Quase 550 mil mortos, só aqui no Brasil. São centenas de milhares de términos, de lutos e de tristezas, ao ponto de eu ter agradecido por minha mãe não ter visto o que vimos nesses últimos 18 meses. Porque foi muito. Foi tanto que não saberíamos bem o que dizer das nossas ausências, medos e tristezas. Minha pequena família – eu e duas irmãs – mesmo morando no mesmo País, temos em comum o que outras famílias, talvez grandes, talvez enormes, em Países distantes, também têm – não nos vemos.
E quem não se vê, estando saudável, é feliz. Olhando ao redor, todos nós conhecemos alguém que perdeu alguém. Todos nós sentimos a dor da perda, da incompreensão de tê-la diante dos olhos, todos nós sentimos o mesmo medo. O medo da morte, da doença, da falta de ar, da falta de oxigênio, falta de lugar no hospital, falta de vaga de internação, medo da intubação. Medo da morte. Será que fizemos tudo? Quem não fez, quem tirou selfies com oportunistas de vacinas inexistentes, quando será julgado como pirata espiritual? Em vida?
Muita coisa terminou. Havia vidas com números de pessoas vivas que viraram apenas números de sepulturas que não se pode visitar, enlutar, entender a perda. Apenas 15 minutos e adeus.
Exatamente por isso, precisamos agora festejar intimamente o fato de que há pessoas que sobraram e há o que reconstruir. O Circuito de Cinema Saladearte, aqui em Salvador, o convite pra filmar em algum interior, algum dia – talvez já na primavera; recomeçar a vida, recomeçar a vida com um abraço. Recomeçar casamentos, reter nas mãos um carinho, um beijo guardado, duas peles que se aproximam e se sentem e aquecem, sem violência, nem indelicadezas. Reter o humano em nós e já pressentir o gosto da cadeira do cinema, o escurinho, as mãos dadas – a vida, de volta.
Não que eu tenha morrido, ao ficar em casa. Mas afinal, todos morremos com tantas mortes por dia. Todos os olhos choraram, no mundo inteiro, até na Nova Zelândia, até na Finlândia – paraísos de bom senso e sem experiências com cloroquina. Todos morremos todos os dias. Isso ficou tão claro... Quando a peste se for, ainda assim morreremos um pouco por dia porque isso é viver. Viver é morrer um pouco e dividir alegria, mesmo quando seus olhos veem a morte e por isso – só por isso – há e haverá esperança.
Houve quem morreu, quem adoeceu, quem quase morreu, mas que sobreviveu. Houve o capricho do pobre que viveu e do multi-riquíssimo que não conseguiu. Houve, desde há muito ausente e indiferente, uma troca de olhares entre todos. Não, não foi um toque de pele, um olhar solidário ou respeitoso. Mas pela primeira vez, desde que nasci, eu vi que todos se viram e sentiram a mesma coisa. Pena que foi medo. Poderia ter sido amor, gentileza, respeito ou sinceridade. Foi medo e o medo nos separou e uniu. O medo nos trouxe e nos levou na maré da vida que desta vez virou tsunami que ainda não acabou. Mas de lá detrás daquela nuvem saiu o sol. E minha amiga ganhou o melhor de nós e do Bug num pequeno filme de amor – num doce filme de amor, minha cunhada ganhou risos, bilhetes, ligações.
O sol vai nascer e com cinema, vocês vão ver!
O sol vai recomeçar a secar nossos olhos, mas temos que nos lembrar dos tantos meses em que eles passaram sendo molhados, chorados e perdidos. Foram artistas, cientistas, médicos, loucos, políticos, mendigos, favelados... foram pessoas, nós, o nós que existe em nós. Pra eles, pra nós, a esperança de podermos dividir nossas caixinhas de leite, mudas de plantas, frutas, ervas, chás, palavras, atenções, bons dias, como antigamente. Porque o hoje e o antigamente se aproximaram tanto ao nos afastarem...
Que as vacinas nos salvem, mas não nos afastem deste centro de amor; que o olhar possa evoluir e amanhã, sem medo, possamos nos tocar de novo, nos sentindo vivos. Realmente vivos. Vivos de amor.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
“Recomeço” Bug Sociedade
Parece uma espécie de sorteio. Algumas pessoas com comorbidades sobrevivem milagrosamente. Pessoas saudáveis ficam com graves sequelas ou não sobrevivem. Parece que o acaso veio e escolheu alguns para ficar, alguns para mudar e alguns para ir.
Se ficamos, onde ficamos? Se é um aviso para mudar, o que é necessário mudar? Se continuamos, para onde vamos?
Muitas perdas inusitadas. Rituais de luto desarmados, desfeitos, impedidos. Demasiada dor de uma vez só. Vidas inteiras de construção, destruídas num ano e meio. Pessoas sem caminho, sem soluções, sem saídas. A dificuldade em entender por que razão tudo isto aconteceu desta forma. Escolhas profissionais que davam tão certo, que foram pensadas, que eram seguras, viraram pó. Os países e a economia mundial quer diminuir ou extinguir o funcionalismo público. Mas foram esses, quase os únicos que mantiveram seu salário seguro. Algo a pensar seriamente.
O planeta Terra está doente: pandemias, tempestades, chuvas, incêndios, violência, intolerância. Mas nós não queremos aceitar que precisamos mudar. Nós queremos que os outros mudem, mas não conseguimos e por isso não queremos mudar. O mundo está a mudar por nós. E estamos a ficar sem escolhas. O mundo vai dizer o que é para fazer, para aguentar, para sofrer. É assustador o que está vindo por aí.
Se cada um de nós, em todo o mundo, elencar o que viveu de diferente e duro, desde março de 2020, será difícil escolher quem sofreu mais. Todos sofremos e estamos a sofrer muito. É tanta dor à nossa volta e tanto desarranjo social e profissional que nem tocamos no assunto. Seguimos. Só dá para seguir. Se paramos para chorar e sentir, parece que nossa alma vai ser engolida.
Recomeçar. A pandemia tirou muito. O que deu? O foco na sobrevivência, no essencial. Nos que importam. A alguns deu o empurrão para aprenderem outras profissões. Na marra. Bons profissionais crescem assim. O importante ficou mais nítido. Esvaziar a bagagem. Repensar o caminho.
Se algumas pessoas não se preocuparam com você, nesta pandemia, acredite, nunca se vão preocupar. Guarde-as com carinho num lugar bem fechadinho. E deixe-as estar lá, sossegaditas.
Recomece. Tudo você aprende. Tudo você consegue. Sempre leve as aprendizagens de outros caminhos que fez. Aprender a editar com tutoriais da internet, depois dos 50 anos, pode parecer uma bobagem. Mas bobagem é subestimar as pessoas. Bobagem é ligar e perguntar em que gastam o tempo as pessoas em casa, durante a pandemia. Talvez a sobreviver. Talvez a trabalhar todos os dias, para ter dinheiro para comer, para pagar as contas, para tentar ajudar os que nada têm. Talvez a pensar como ajudar os que não se podem ajudar a si próprios. Bobagem é rir da bondade e entrega de quem quer aprender e contribuir. Bobagem é querer usufruir das capacidades dos outros gratuitamente, principalmente neste momento.
Recomeçar é não fechar as portas aos outros. Nós não sabemos do que eles são capazes. Devemos abrir as portas sempre e deixar cada um escolher por onde quer ir. Qualquer ser humano, é capaz de coisas grandiosas. Abra as portas. Confie. Acredite. Estimule. Aceite. Proteja. Esteja presente nos momentos em que tudo parece não fazer sentido. Em que a dor de se ser injustiçado pelo que se perdeu nesta pandemia esmaga o coração. E siga quando volta o sol e aprecie o voo do ser humano que encontra o caminho, ou um novo caminho. Um novo recomeço.
Ana Santos, professora, jornalista
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