Há poucas semanas, aqui em Salvador, o coronel Xavier, numa matéria para o Correio, pediu que as pessoas voltassem a falar para resolver seus problemas, ao invés de atirarem umas nas outras. Vou repetir. Falar, ao invés de atirar. Parece loucura que tenhamos chegado tão longe, mas o Bug Latino nasceu exatamente da percepção de que as pessoas estão falando menos – e se falam menos, vão mais rapidamente às vias de fato, podem esperar.
Nós sabemos que algo não anda bem. Não se ouve mais “por favor”, já repararam? É como ceder e pedir licença pra passar, dar o lugar para os idosos no transporte, agradecer, cumprimentar, pedir desculpas, negociar fossem parte de um passado onde as pessoas falavam demais. Você chega doente, no hospital e a atendente te pergunta à queima roupa: “O que é”? – com aquela má vontade que dá nojo. Você vê os políticos andando de carro blindado e te virando a cara, enquanto você leva “tapa na cabeça na geral” que toma no ônibus. Ninguém fala pra explicar o problema. A gente recebe o não e parece que não pode perguntar o motivo. Parece que o motivo não consta mais da explicação.
Somos seres falantes. Não somos meros “obedecedores”. Nem vou dizer obedientes, pra não confundir. Se a autoridade precisa da nossa ajuda, ela pode pedir a colaboração e creio que tem grande chance de dar certo. Pedir envolve palavras e explicações. Nossos políticos acham mesmo que podem se reduzir a ogros agressivos e tudo bem? Talvez. Mas para alguns. Poucos, cada vez menos e espero que cheguem a quase nenhum.
Um pouco mais de fé na nossa natureza comunicante, um pouco mais de confiança de que até a morte podemos aprender a dialogar mais e melhor. Mandar não é coisa de líder – é coisa de jagunço. Tem muito riquinho que fala como cangaceiro, essa é que a verdade. Que não tem modos, não sabe segurar o garfo, não sabe pedir, compartilhar, não sabe ver que existem outras pessoas e que sua órbita jamais será única no mundo. Antes que isso aconteça, o mundo abre mão da nossa existência e isso já está acontecendo agora! O fazendeiro megalomaníaco, o banqueiro canguinha acham que vão respirar dinheiro, vaca, bosta de vaca – mas sem chuva, só incêndio e problema de clima, não tem economia, nem vaca e nem bosta...
Um pouco de ética urbana - e pra ela não é necessário economizar nunca. Porque todos podem bater o carro, tropeçar na criança ou não ver e esbarrar na grávida, mas ninguém pode sequer pensar em bater, matar, ferir, nem usar carro como arma. Nunca. Um pedido de desculpas, um olhar amistoso, uma maior capacidade de ajuda e podemos transformar os tiros da parte metropolitana da cidade em educação. Mais do que isso: em gentileza. Há um bem viver que não é comprado com dinheiro, QI /cunha e poder e ele se alcança com humildade e generosidade. Você ainda sabe o que isso?
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro, TV
Salvador. Bahia. Calor, luz, sol, alegria e vida ao ar livre. Quando cheguei pensei logo que seria um lugar ideal para andar a pé, de bicicleta, de moto, sentindo a brisa do vento, da vida pulsante. Parecia ser uma cidade perfeita para o fazer. Até começar a dirigir.
Eu tenho a carteira nacional de habilitação/ carta de condução desde os anos 90. Achava que dirigia bem. Até vir para Salvador.
Buracos pipocam a todo o instante, mas vejam, não são buracos. São crateras. Algumas engolem carros, ônibus. Outras transformam um carro novo num carro com direção ou eixo quebrado, ou pneu furado. Quem vai conhecendo as ruas, vai percebendo que os buracos voltam sazonalmente. Não conheço nenhum buraco que tenha mudado de cidade. Todos ficam com muitas saudades e pouco tempo depois de consertados, voltam em todo o esplendor. Que estranha forma de resolver problemas. Ou de manter problemas.
As calçadas/passeios, competem em buracos igualmente. Ou são impecáveis, em frente de hotéis de cinco estrelas ou em zonas nobres ou se prepare para entorses ou quedas graves. São tantos buracos que nem chega a ser calçada – talvez uma “buracada”, necessidades dos cachorros que os donos não apanham para não cansar as costas, carros e ônibus que sobem sem culpa para facilitar as manobras, artigos à venda fora das lojas – avenida sete - ou nem calçada tem. Mas a falta de segurança na rua parece fazer com que não haja preocupação em arranjar calçadas. Afinal por ali ninguém se atreve a passar e assim vamos mantendo a norma.
Existem ruas com inclinação de mais de 15%, com asfalto cheio de óleo, sem calçada, com crianças passando no meio da rua, junto com motos, bicicletas, pessoal com carrinhos de mão. Tem uma ladeira aqui que até chamam de “Ladeira do Tombo”. Como voluntária, antes da pandemia, dava algumas palestras em escolas públicas. Quando fui para duas dessas escolas achei que ia enganada. Uma, o GPS do carro dizendo para virar naquela rua e meu medo dizendo que não era possível, pela largura, pela escuridão, pelo lixo no chão, porque nenhum carro ia por ali. Outra, pela inclinação da ladeira. Nessas horas rezo para ver o fim da ladeira, para não ser obrigada a parar, para o carro não virar de costas de tanta inclinação. Tem outra ladeira assustadora em Cajazeiras, que sobe um carro por vez, apesar de ter dois sentidos/ duas vias e você ouve os pneus a todo o instante deslizando, escorregando. Não dá para sair da primeira marcha. Em dias de chuva meu coração fica paralisado durante esse momento.
Mas aquilo que me deixa estupefata é assistir a ônibus lotado, passando voando, sem respeitar os sinais vermelhos. Mas você acha que são só eles? Não, não. Os taxistas, o pessoal de moto, o pessoal de moto de delivery/entregas ao domicílio. É uma loucura. No sinal/semáforo, quando passa de amarelo para vermelho, você precisa rezar. Mas a reza é para não ter nenhum destes “corajosos” atrás de você. Porque vai querer seguir, e se pudesse seria mesmo por cima do seu carro. Eu me pergunto se os motoristas de ônibus, motoristas de táxi, ganham algum prêmio de cada vez que fazem estas infrações. Porque é a toda a hora. O cidadão normal se fizer isso, receberá multa. Devem estar todos tentando bater alguma espécie de recorde. Deve ser isso. O cidadão normal, se parar 5 segundos para deixar uma pessoa sair do seu carro, para ir ao médico, numa zona permitida mas controlada por vídeo, pode contar com uma multa. Dali a seis meses, mas pode contar. E vão te jurar que você ficou muito tempo com o carro parado. Já pensei em colocar uma câmara de vídeo no carro. Talvez assim a gente possa provar aquilo que todos vêm todos os dias nas ruas. Mas parecem não se importar muito. Ou então é como quando somos crianças. Quando o pai autoritário não está a ver podemos, mas quando ele chega a casa somos uns anjos. Ui, somos, somos.
Podia ficar por aqui. E era capaz de ser sensato. Mas preciso de vos dizer da minha tristeza em não poder andar de moto. Por que razão? Absoluto cagaço. Há uns anos, levava regularmente uma pessoa a um hospital ortopédico da cidade e me arrepiava toda sempre que via aquelas pessoas com ferros espetados nas pernas, nos braços, por todo o lado. Fomos fazendo amizade com as pessoas e lá conseguia ter coragem para perguntar o que aconteceu. A resposta era sempre a mesma...”foi de moto”. Fim de conversa.
Bicicleta. Uma das minhas paixões. Em menina, adolescente e adulta, eu, meus irmãos e primos mais velhos, fazíamos passeios sensacionais pelas florestas, montanhas, estradas. A qualquer hora do dia e da noite. Cheguei a ir trabalhar de bicicleta muitas vezes também, tanto nas aldeias como nas cidades. É uma sensação de liberdade, de relax, permite conversas, risadas. Uma terapia. A minha paixão está em risco, depois de vir viver para Salvador. Pela calçada não dá – buracos, pessoas têm prioridade. Pela estrada, Jesus do Céu. Talvez fazer o meu testamento primeiro. Resta-me o que uma cidade cheia de problemas de espaço para carros, com a condução perigosa de ônibus, motos, criou para a circulação de bicicletas. Passo a explicar. Imagine uma rua, com calçada. Depois da calçada, um espaço para estacionar os carros. Depois do espaço para estacionar legalmente o carro, existe uma trilha para bicicleta. Depois dessa trilha, a estrada onde voam carros, ônibus e onde as motos parecem mosquitos gigantes raspando e se contorcendo por entre espaços ínfimos. E do outro lado, espaço para estacionar e calçada de novo. Resumindo, as bicicletas têm um espaço criado só para elas, no meio do inferno. Quem vem de carro e quer estacionar precisa atravessar a “rua” das bicicletas. Quem sai de um posto de gasolina, a mesma coisa. Os ônibus utilizam muitas vezes esse pequeno espaço para ultrapassar carros e motos. É uma coisa tão louca, tão perigosa, que é mais seguro fazer voo de asa delta, parapente, atravessar o oceano sozinha de barco. Eu gostava de conhecer a pessoa que teve esta bela ideia. Gostava de saber se sabe andar de bicicleta, se já experimentou este novo desporto radical da cidade. Porque andar de bicicleta na Holanda eu também já andei e é o paraíso. Mas trazer um exemplo de cidades planas e com pessoas que obedecem a regras de trânsito, para este caos, parece uma ingenuidade tão absurda que pode causar demasiados problemas graves. Esta situação é perigosíssima. Pela saúde das pessoas, pelo bem estar das populações, por uma cidade mais segura, peçam colaboração. Tem pessoas da sociedade civil que voluntariamente podem vos ajudar tanto. Eu sou uma das que está disponível. Qual é o problema disso? Nós também precisamos de ajuda em coisas que vocês sabem. A vida é troca.
Ana Santos, professora, jornalista
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