“ALGUMA COISA ESTÁ FORA DA ORDEM MESMO!” BUG SOCIEDADE
Caetano está plenamente certo. Vivemos um Haiti disfarçado em muitos países – inclusive o nosso. A começar do nosso. As discussões que temos são – me desculpem as excelências – totalmente dispensáveis, diante da carência de todos e da carestia geral, que não parece incomodar nenhum político vinculado ao governo. O que é inflação, se eles querem mesmo é manter como está o bilionário sistema de orçamento secreto? Manter a alegada “alimentação das emas e dos peixes em dia”, gastando milhões de cartão corporativo?
Quem de nós – incautos pagantes dessa enorme conta mensal – conseguem ganhar x por mês (um x muito, muuuito bem pago, aliás), mas não precisa gastar nada do que ganha porque recebe um aval “gaste sem limite e escondidinho”? Nenhum, além do presidente da câmara, do presidente da nossa nação, além de ministros e ajudantes que vão viajar pra todo e qualquer cantinho, ganhando diárias que alimentariam uma família por mês, com o que eles ganham em um único dia.
Isso pra inaugurar um chafariz, um pedacinho de estrada, uma ponte que liga nada a nenhum lugar importante na economia? Isso pra entregar diploma em escola – militar ou civil? Com o dinheiro da inauguração quantas pessoas almoçam e jantam naquele dia?
Só eu penso em economizar porque é um pecado gastar com tanta gente passando fome? Ou só as pessoas que estão se apertando querem ajudar de verdade, enquanto aquelas que têm melhores condições estão fazendo discursos obtusos e vazios? Jura que algum político teve mesmo a ideia de que dizer que gasta 1 milhão, mas precisa pagar a comida de emas e peixes é um bom argumento pro povo que pega comida no lixo? Quando eu era criança, todo mundo dizia: quem jura, mente...
Ta na cara que é tudo mentira.
Vai começar o programa eleitoral e os políticos “arrumaram bilhões pra campanha”. Bilhões. Não perca as contas. São milhões em viagens inúteis, milhões em gasto com cartões corporativos, bilhões de orçamento secreto e mais bilhões pra campanha eleitoral. A vida de um político é desfocada da miséria. Ele tem assessores em pencas, um gabinete que recebe favores de todos os lados e dinheiro – muuuito dinheiro. Mas, no caso de alguns, tem o dinheiro que entra por dentro, mais o dinheiro que entra “por fora” – o tal secreto – ninguém quer dizer quem divide, com quem, quanto é e pra quê serve.
O Supremo disse que era pra dizer – pois agora eles querem e só pensam em desobedecer. Ninguém quer dizer quem divide, com quem, quanto é e pra quê serve. Se aparecer Deus com raios nas mãos esses senhores vão mentir e tentar enganar. Depois vão rezar e bater no peito pra enganar mais ainda. Ninguém quer dizer quem divide, com quem, quanto é e pra quê serve.
Alguma coisa está fora da ordem quando você lança mão de um sobrenome e um partido político como prerrogativa que justifique desvios de dinheiro – de falta de respiradores e oxigênio que mataram centenas de milhares, até ver o povo pegando pelanca no lixo e nem piscar.
O nosso Natal tropical tem o coração frio como o gelo. Eles comem picanha de centenas de reais por cada bife e nós olhamos no Google como o ovo pode ser uma boa opção de ceia. Isso e alguém tem a ideia de justificar um gasto de milhões com milho ou seja lá o que for que coma uma ema!
De Natal, no Haiti e aqui, eu queria presentear essas pessoas com vergonha na cara. Caixas grandes. Enooormes. Gigantes.
Vergonha alheia eu sinto todo dia.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
“Racismo” Bug Sociedade
“Não devemos esquecer que a história não é feita sem grandeza de espírito, sem moral elevada, sem gestos nobres.” Rosa Luxemburgo
Porque esquecemos?
Último dia de novembro de 2021. Voltamos a tentar enfrentar o racismo em novembro de 2022, para quem não sofre. Até daqui a um segundo, para quem sofre. Quando paramos este fluxo?
Não somos especialistas, não somos negras, não somos africanas, não somos da Bahia, não sou brasileira. Mas coisas erradas são coisas erradas. Injustiças não podem acontecer na nossa frente e continuarmos a viver como se nada tivesse acontecido. Todos já vivemos muitas injustiças e os seus efeitos na nossa vida. Como podemos ficar calados com as injustiças nos outros? Mesmo que seja pouco, podemos fazer algo. Não o que é habitual fazer. O habitual não chega como vemos. É necessário sempre mais um pouco. Aqui, no Bug Latino, se tem algo a dizer, nos procure. Se tem algo a nos corrigir, nos ensine. Queremos aprender, colaborar e sempre fazer melhor.
Se o racismo persiste talvez os comportamentos e ações, que julgamos serem corretas, não estejam bem, não tenham efeito, estejam a ser feitas de forma errada. Precisamos tentar entender onde erramos. Quais as palavras ou ações feitas com boa intenção, mas que só pioram? Estar atento. Aprender.
Diferença e desigualdade são coisas diferentes. Diferença deve ser uma coisa boa. Cada um é único e isso é sensacional. Desigualdade é uma coisa errada e injusta. Significa limitar as oportunidades. Essa limitação de oportunidades existe há muito tempo e, talvez, até esteja a diminuir. Mas basta ainda existir para ser enorme. As pessoas que sofrem desigualdade não querem que diminua, querem que desapareça. Qualquer pouco é insuficiente e muitas vezes considerado uma afronta porque parece esmola. E as pessoas que nunca sentiram nenhum tipo de desigualdade, discriminação, consideram que se está a fazer muito e ficam ofendidas com a falta de elogios. Aproximar esta noção da realidade tão díspar é necessária.
Ouvir, ler, aprender. Pensar. Comparar com as dores que se sente. Procurar saídas.
Em 1993, minha primeira escola a sério como professora, era num dos bairros com mais problemas socioeconómicos de Portugal – o Bairro do Aleixo. Eu cheia de energia e soluções, os alunos cheios de estratégias que anulavam todas as minhas soluções. Difícil. Era a única escola que fazia reuniões de professores e alunos em conjunto, após duas semanas de aulas – ou de “batalha”. Todos os professores revoltados com os alunos, com a dificuldade de dar conteúdos e recorrendo a todas as punições e castigos e leis e normas para pressionar os meninos. Eles, cada vez piores, cada vez mais indisciplinados, cada vez mais unidos, cada vez mais longe de querer aprender e de aceitar as normas. Quando entramos para a reunião não sabíamos que incluía os alunos. Entraram como reis, fazendo barulho, rindo, dominando. Uma professora de educação visual, professora na escola há uns 20 anos, falou algo e todos se calaram. Silêncio, sorrisos, gentileza, carinho, doçura. Como é??? Apenas ela falou com todos. Os alunos saíram, depois de lhe darem um enorme abraço e ficamos apenas os professores. A gente achou que a professora tinha algum desequilíbrio porque com eles parecia uma menina, com a mesma linguagem, com os jeitos. Mudou totalmente quando eles saíram. Ficou calada. Eu perguntei-lhe como ela conseguia falar com eles assim e ter essa relação tão gentil com meninos tão insubordinados? Ela olhou para mim, sorriu e disse que todos deveríamos ser mais gentis com os meninos. Que o que eles precisavam era de carinho, de amigos, de pessoas confiáveis. Se fôssemos agressivos, disciplinados, rígidos, teríamos monstros na sala. Se fôssemos gentis, preocupados, solidários, e principalmente, se não mostrássemos medo, iríamos fazer grandes amigos. Achei aquilo um profundo disparate. Vinha da faculdade fresquinha. Tinha aprendido o que fazer quando algum aluno não cumpria os exercícios, as ordens, a autoridade. E não era nada disso. Os dias foram passando. Realmente eu via que quanto mais ordem e disciplina eu apresentava, mais desobediência tinha. No desespero, fui tentando e experimentando, ouvir, perguntar, saber como estavam, o que gostavam. Nos momentos que tinha aprendido a punir, tratava bem e fazia exercícios da forma que gostavam. Click!! Mudei, mudaram. Aprendemos juntos a construir uma amizade, a trabalhar, a partilhar. Tive um ano sensacional, a partir daí. Incrível como tudo se modificou. Fiquei tão fascinada que mais tarde fiz mestrado em Psicologia. Fiz grandes amigos. Uma das minhas alunas, das mais problemáticas, se tornou uma das minhas melhores amigas. Mulher dura, valente, corajosa, que nunca teve vida fácil. E eu a tratava como alguém frágil quando afinal a frágil era eu. Eu a privilegiada querendo fazer como aprendi, eles maduros com a dor da vida, querendo apenas que fôssemos iguais, me abrindo a porta da sabedoria. Eu que tinha tanto a aprender. Como qualquer privilegiado.
Ana Santos, professora, jornalista
Comments