O IMPÉRIO FEMININO CONTRA-ATACA
Pode parecer à princípio que estou misturando assuntos, mas não. Bem que eu gostaria, mas não. No mês do orgulho LGBTQIA+, o Brasil, que mata gays e trans “assobiando” (como se as vidas não fossem 100% vivas ou algo assim), aparece de novo, “do alto do seu machismo” para apontar para as mulheres, como se nós fôssemos incompetentes, incapazes, burras, rasas e, portanto, irresponsáveis por decisões que “parecem ser realmente bem pensadas” por eles – o gênero masculino. Então, eles decidem o que creem ser melhor para nós. Como no caso de ser estuprada e dar seu bebê pra adoção. Como no caso de ser estuprada e não poder ter aquele bebê. O machismo aponta logo o que se deve ou não fazer, o que deveríamos ter avaliado, pensado, sopesado, mas – MAS – o gênero masculino não parte do ponto de onde as mulheres de qualquer idade têm de partir: O ESTUPRO – claro! – sempre cometido pelo gênero masculino, contra o gênero feminino.
O que tudo isso relaciona? Que todas nós, do gênero feminino, temos a mesma coisa em comum: um cuidado especial - às vezes de sobrevivência ao perigo – em relação à forma como o gênero masculino vive a sua vida – o que é muito diferente de sua postura quando ele julga a forma como vivemos a nossa.
O perigo de assédio, estupro, agressividade, violência doméstica, espancamento, avanço não autorizado, grosserias públicas, para nós, provém sempre do gênero masculino. Por que os protestos dos “homens religiosos e preocupados com a harmonia familiar” não falam disso – muito mais útil do que as reclamações e grosserias diante do fato de nós, do gênero feminino, dividirmos o mesmo banheiro no shopping? É mais grave fazer xixi tendo ao lado uma mulher trans do que ser estuprada com 10 anos, 11 anos? Do que engravidar de um monstro e ter os mesmos “homens consternados” falando da sacralidade da maternidade, quando deveriam estar falando da criminalidade e da covardia do estupro? De penas maiores e meios de educar o nosso gênero a gritar, reagir – ao invés de se envergonhar e se sentir culpada?
O que o mês do orgulho LGBTQIA+ tem a ver com os “acessos de sacralidade” e os estupros de menores? O gênero feminino confrontando o gênero masculino. Porque é a nossa coragem de olhar nos olhos deles e dizer, gritar, dizer não quando assim o quisermos, ter orgulho de sermos quem somos, que eles querem calar, matar, espancar. 100% das mulheres do mundo, de alguma forma, em alguma idade, sofrerão algum tipo de violência ou assédio. De “gostosa, te chupava toda” ao estupro, ao feminicídio, existem muitas possibilidades e nenhuma de nós, do gênero feminino, sabe qual será a sua sorte.
Muitas mulheres são machistas, muitos homens não o são – por isso o cuidado precisa ser sempre redobrado. Ninguém sabe o que o falso moralismo esconde. “Ah gravidez! A mulher é culpada! Ah o estupro! Quem pode dizer se foi estupro mesmo? Ah, o aborto! Mulher “minha”... Se fosse a “minha” mulher... Parece que o filho é de chocadeira... Dá mais do que chuchu na serra, essa galinha... Você viu a roupa que ela usava quando foi estuprada? Pediu, né? Guarda as suas cabritas, que o meu bode tá solto!
O fato, é que o nosso gênero precisa saber que o perigo pode ser o porteiro, o avô da prima, o pai, o padrasto, o vizinho, o namoradinho – o perigo está aí, bem na sua frente. Olha de novo, agora prestando mais atenção – bem na sua frente. O falso moralismo do julgamento machista merece uma só palavra – NOJO!
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
O Brasil é tão incrível em estudos, em recolha de estatísticas, em leis como a Lei da Maria Da Penha (considerada pela ONU a melhor lei do mundo), em estatutos como o Estatuto da Criança e Adolescente, em documentos super completos no Ministério da Educação, que muitas vezes me pergunto a quem o país se dirige? Para quem são todos estes planos perfeitos? Para as crianças e adolescentes que estudam nas escolas mais caras e luxuosas do Brasil que custam, por aluno, o mesmo que um ótimo salário na Europa? Porque as escolas que o Bug Latino e A Cor da Voz visitam para dar palestras nem cadeiras têm para todos os alunos. Para quem é a Lei da Maria da Penha se ela não foi colocada em prática de verdade? Continuamos com os mesmos medos, os mesmos riscos, os mesmos acontecimentos terríveis com mulheres, com população lgbt, com população negra, indígena, a mesma insegurança na hora de pedir ajuda e proteção. Para quê tanto documento fantástico se não resolve nenhum dos problemas graves do país? Como você resolve seus problemas pessoais graves? Escrevendo projetos perfeitos sobre como ter dinheiro para um telhado novo, sobre a descoberta de um medicamento para curar sua filha, sobre como encontrar um emprego que te sustente? Ou depois de pesquisar você mergulha no mundo e no que é possível fazer? Existe uma lacuna tão funda, tão funda, entre o que se escreve e determina como planos de educação, de luta contra a violência, de igualdade de um povo, de um país e o que acontece na prática, de verdade, na real, que causa náuseas. Se gasta milhões avaliando, milhões criando documentos e tudo parece ficar resolvido. E, se você fala que está tudo na mesma, te mostram os documentos. Como se faz para que as pessoas entendam que só fizeram meio caminho? Como se explica que algo está errado nesse processo? Ninguém se pergunta nada quando assiste nas televisões, nas redes sociais, a meninas de 11 anos estupradas e grávidas e onde todos dão opinião sobre o que elas devem fazer com seu bebê? Onde estavam as suas preocupações para evitar que fossem estupradas? Não digam mais que o problema está no tamanho da saia da menina, ou na forma atrevida daquela mulher ou do negro ou negra ou indígena ou estrangeiro que se meteu onde não devia. Tem algo muito errado também quando os homens mais sensatos dizem a uma mulher que o problema dela no Brasil é ter um bom currículo, ser inteligente, não depender de nenhum homem e, se necessário for, também dizem que uma mulher lésbica é como se fosse uma mulher que nunca experimentou um homem a sério. Olhe, é tanta coisa tão primária, que a pessoa precisa respirar fundo e tentar a solução por outro lado para não perder o amor nem a admiração por um país tão maravilhoso nem pelas pessoas incríveis que vivem nele e que também tentam buscar soluções.
Fatos. Em 2021, no Brasil, teve um estupro a cada 10 minutos e uma mulher foi vítima de feminicídio a cada 7 horas. A maior parte dos estupros são de crianças e adolescentes até 13 anos. A mulher, só em adulta se dá conta dos nomes e do significado das coisas que lhe tentaram fazer, ou fizeram, em criança e adolescente. Em silêncio. E em silêncio fica para sempre se a ou as pessoas que a atacaram em criança estão em lugares de destaque e de poder e ela dependendo do marido ou dos pais.
13 mortes violentas de mulheres por dia. 66% dos feminicídios acontecem na casa da vítima. Principal motivação do feminicídio é o inconformismo com a separação. “O feminicídio ocorre, em regra, por motivo de sexismo, machismo, em razão do patriarcado mesmo, porque o homem não aceita ainda que a mulher esteja em igualdade e possa exercer sua condição de pessoa." Valéria Scarance Fernandes, promotora de justiça do MPSP
Estimativa média de 822 a 1.370 estupros a cada dia no Brasil. 135 estupros diários que são registrados nas polícias brasileiras. A casa é o local onde ocorre a maioria dos estupros de meninas – 89%. O agressor de estupro de crianças: 71% parentes, 21% amigos da família. Agressor de mulheres adultas: 29% estranho, 22% ex-marido ou ex-namorado, 15% namorado ou marido, 12% parente, 12% amigo da família.
“Existe um universo de violações de direitos das mulheres, quando ocorre o estupro de vulnerável, por exemplo, que são aquelas meninas com até 14 anos que sofrem práticas sexuais. Muitas vezes essas situações não são vistas como estupro, daí não se busca o direito. É importante que a gente entenda que o aborto é um direito, ele não é algo que precisa acontecer, é uma possibilidade. Então, a gente vai ter parte da população acessando o pré-natal e, infelizmente, uma enorme parcela dessas mulheres são vítimas de estupro. A gente precisa falar desse acesso que é o direito a um aborto seguro, em um equipamento público, com o apoio de uma equipe de saúde, para que as vítimas não tenham nenhum tipo de repercussão no seu futuro, que ela possa vivenciar o procedimento sem nenhum tipo de julgamento negativo sobre aquela tomada de decisão.”
Débora Britto, ginecologista e obstetra da Maternidade Escola Assis Chateaubriand, do Complexo Hospitalar da Universidade Federal do Ceará, durante o podcast: Como funciona um serviço de referência no aborto previsto por lei
Uma em cada quatro mulheres foi vítima de algum tipo de violência na pandemia. As mulheres sofreram mais violência dentro da própria casa e os autores de violência são pessoas conhecidas da vítima. Tipos de violência: ofensa verbal, tapas, chutes ou empurrões, ofensa sexual ou tentativa forçada de relação, ameaça com faca ou arma de fogo ou espancamento. Violência tem mais prevalência entre jovens, negras e separadas. O feminicídio praticado em contexto de relação afetiva, marido, namorado, amante, tem uma incidência próxima dos 80%. Em 58% dos feminicídios foram usadas armas brancas (faca, canivete, foice etc.).
141 travestis e mulheres transexuais tiveram mortes violentas em espaços públicos em 2021. 52% das mulheres de SP temem assédio no transporte público. Racismo estrutural e homicídios é inequívoco quando as mulheres negras são vítimas 71% mais do que as mulheres não negras.
Dar liberdade e autonomia a crianças é ensinar-lhes o que está incorreto outras pessoas fazerem com seu corpo. Ensinar que são as donas do seu corpo e são elas que permitem quem o toca e a forma como toca e com que objetivo. Dar liberdade a adolescentes, é lhes dar a capacidade de saberem não se colocar em perigo, dar-lhes a capacidade de saberem onde procurar ajuda e como “fugir” ou se afastar de pessoas e ambientes tóxicos, em segurança. Dar liberdade a mulheres adultas é lhes dar a possibilidade de terem autonomia financeira, através do seu trabalho, das suas competências e talentos. Essas mulheres estarão em situação de escolher se afastar de situações e envolvimentos tóxicos, mesmo com familiares, mesmo que estejam vinculadas através dos filhos. Sem autonomia, estarão sujeitas a todo o tipo de exploração, abuso, domínio.
Fontes
Ana Santos, professora, jornalista
Comentarios