As mulheres mudaram muito. Politizaram-se e levantaram os olhos. Estudaram muito mais. São mesmo insaciáveis. Percebem que os filhos podem ou não ser pequenas prisões, dependendo de sua relação com o casamento, o mundo, o trabalho e a família. Já viram muita coisa e hoje apoiam muita coisa – da manutenção do Parque de São Bartolomeu para a comunidade, até democracia instaurada e atualmente, arranhada.
Já vimos de um tudo na vida. Entramos no mercado de trabalho para demonstrar que nem de homens precisamos para criar filhos. Nos bastamos. Mas continuamos amando e desejando companhia. Uma companhia diferente. Que hoje em dia, nem precisa ser propriamente masculina. Apenas descobrimos a nossa capacidade de amar e de precisar de um amor que na maior parte das vezes nem precisa muito de gênero porque amor de mulher fala...
Mas a distância do sonho é longa e quando uma morre de tapa, de tiro, de facada, de abandono, de tristeza, de dor – quando o pé de galinha desaparece no meio do sofrimento, da barreira caída, da casa derrubada – aí a gente vê com certeza que o caminho tem curvas e subidas, cerca e declives, pedras e lama. Nunca tivemos parquinho e rua asfaltada. Mas apenas pegamos as mãos dos pequenos e lá vamos nós: cuidado aí, olha para os dois lados, sua roupa sujou, filho, não pode comer isso agora, vai tomar banho, vai... e junto a isso: sim senhor, o balancete seguiu online, não houve problema nenhum na reunião, ai gente, que pessoa é essa? Ninguém merece um chefe assim! Comigo ele não repete essa sem vergonhice! Quer repetir, filho? Quem deixou a toalha molhada em cima da cama? É seu dia de passear com o cachorro!
Multitarefa, multiferramenta, multissentimento. Multi.
Haverá o machismo, o patriarcado, a aristocracia, o preconceito. Haverá o que já há e o que já houve. E haveremos nós e o futuro do que mudaremos no mundo porque certamente, se ele estivesse nas nossas mãos, seria mais limpo. E com um bolo de vez em quando pra tomar com um cafezinho fresco porque ninguém é de ferro.
Multitarefa, multiferramenta, multissentimento. Multi. Nós.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Mulheres. Adultas. Participantes ativas das sociedades. Do mundo.
Vítimas diárias de bullying, de assédio moral, sexual, vítimas de violência, de comentários sobre sua vida privada, de boatos, de críticas de suas escolhas no vestuário, no que dizem, no que pensam, no que fazem. Sua sensibilidade é muitas vezes motivo de chacota e de desvalorização das suas capacidades.
Alguns homens afirmam orgulhosamente que não são capazes de ser amigos de mulheres. Só namorados, maridos, amantes. Algumas mães não querem que seus filhos casem com mulheres com formação superior. Porque eles vão se sentir inferiores e vão ser humilhados pelos amigos e pela sociedade. Famílias aceitam mais facilmente um homem que trai a mulher do que a mulher que é traída.
Em relação a salários chega a ser absurdo, em algumas áreas. Como funcionárias públicas é o único lugar onde ganham igual aos homens. O único.
Quando conseguem chegar a lugares de destaque são imparáveis e intimidam. Maria João Pires, Maria de Lurdes Pintassilgo, Clarice Lispector, Maria Bethânia, Sophia de Mello Breyner Andresen, Oprah Winfrey, Marguerite Yourcenar, Elvira Fortunato, Irmã Dulce, Maria Quitéria, Madre Teresa de Calcutá e tantas outras são bons exemplos disso. Todas fizeram caminhos inesperados. Todas enfrentaram dificuldades. Todas queriam muito o que conseguiram. As que estão vivas ainda têm muito para fazer. Em muitos momentos das suas vidas, a “sociedade” tentou travá-las. Mas acreditavam, queriam muito e nunca desistiram.
Um destes dias ouvi Lionel Ritchie, o famoso cantor, dizer que a vida nos coloca de vez em quando um muro alto na nossa frente, não conseguimos avançar e começamos a aceitar que nunca sairemos daquela situação. Nessa parede existe uma pequena brecha que dá a saída. Não parece, ela é ínfima, mas existe. Nunca devemos desistir nem desacreditar. Devemos sempre procurar essa brecha porque quando a encontramos, encontramos a saída, a solução e a vida flui e muda totalmente. Nada mais é igual e dificilmente algo nos magoa, nos abala a partir daí. E coisas boas, inusitadas e mágicas acontecem. Ele tem total razão.
Ana Santos, professora, jornalista
A supervalorização do corpo feminino remonta à pré-história, associada à fertilidade, e foi enfatizada na antiguidade e ao longo de toda a História.
Desde a Vénus de Willendorf, à Vénus do Milo, passando pela pintura renascentista, a arte foi sempre um forte veículo da objetificação do corpo feminino, que esteve na base da cultura ocidental, variando entre incubadora de vida ou tentação do diabo.
Ao longo do tempo, nas sociedades patriarcais, de vincado domínio masculino, o corpo da mulher foi submetido ao prazer e aos desejos do homem, com uma forte conotação pecaminosa, renegando-se firmemente a sexualidade feminina.
Tão tirana quanto alguns homens, na ditadura que impõe ao corpo da mulher, é a moda. A moda dita se as ancas se querem estreitas ou roliças, se o rabo deve ser empinado, o peito grande, a cintura estreita, a perna esguia ou musculada. A moda ordena se a saia é abaixo ou acima do joelho, quanto do colo se mostra, que altura deve ter o salto do sapato. A moda decide se o cabelo é curto e ruivo, ou loiro e ondulado. A moda escolhe a maquilhagem. O verniz. O peso. A moda determina, até, as ocupações, as crenças, os hábitos.
Numa conjugação de exigência atroz, a moda, os costumes, as regras, os homens, a mulher, facilmente, se torna vítima de um complô que a tenta definir.
A mulher deve ter boa apresentação. Não deve chegar ao trabalho com ar desmazelado de mãe que já deu pequeno-almoço a três filhos, adiantou o jantar, levou todos à escola, pôs rímel na fila de trânsito enquanto bebia o iogurte e acabou por fazer uma nódoa na camisa.
A mulher, quando entra na empresa, deve ter o blazer engomado, o cabelo penteado e não estar a olhar para o telemóvel, de lado, ansiosa, a meio da reunião, se vê o número da escola. E, na hora de almoço, apesar de lhe apetecer agarrar num livro e sentar-se num banco de jardim, com uma sandes e as pernas estendidas ao sol, deve aproveitar para fazer manicure e sobrancelhas, porque quando sair do trabalho há deveres e banhos das crianças e não pode chegar a quarta-feira com as unhas lascadas.
À noite, depois de estarem todos a dormir, vai esfregar no cabelo a tinta que trouxe do supermercado, porque não tem tempo, nem dinheiro, para madeixas, mas é melhor tapar os cabelos brancos, não vá o patrão achar que a jovem colega recém-chegada, terá mais sucesso do que ela junto dos clientes.
A mulher olha-se ao espelho, as olheiras fundas, os abdominais que não recuperaram da última gravidez, a celulite nas ancas, e promete a si mesma que vai inventar uma hora para fazer exercício. Mesmo que seja menos uma hora que dorme. Lembra-se que não jantou, e ainda bem, pode ser que pese menos meio quilo de manhã.
Se tivesse nascido em Itália, durante o renascimento, ainda podia alimentar as curvas até se tornar numa vénus de Botticelli. Mas assim, é melhor que tenha cuidado, ou não tarda anda às compras em lojas Plus Size, que no shopping a olham ameaçadoras. E ela já se vê a entrar, olhando furtivamente em redor, como quem pede desculpa pelos quilos que a moda diz que tem a mais.
E se ela fosse como aquelas mulheres fantásticas e organizadas, com cozinhas brancas, luminosas, que vão mensalmente ao nutricionista e têm um personal trainer, também prepararia marmitas saudáveis e estaria sempre “fit”. E até iria a pé ou de bicicleta para o trabalho. Só que lhe falta o chauffeur para levar os filhos à escola. Talvez quando eles forem mais crescidos, pensa, enquanto se mete a cama.
E o marido, satisfeito, abraça a sua super-mulher, força da natureza, sempre tão bonita que já pariu três crianças, e que até na barriguinha se parece com a Vénus de Willendorf.
Cláudia Quaresma, convidada
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