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“Então direi que é poesia”


Azulejos com cores brancas e cinzas. Por cima a copa de palmeiras.
Roberto Burle Marx Calçadão de Copacabana - site archdaily

“À Vela”

“então direi que é logro

o que me roubam um pouco

a cada dia.

a fantasia que não vinga

o sonho que arrefece

a alegria que evanesce e escorre.

 

então direi que é sombra

essa legião bipartida

e louca

que sangra e entoa

cânticos desconhecidos.

a passos largos marcha

em torno de um abismo.

 

então direi que é cíclica

essa vertigem insana

que atordoa e conduz

o rebanho.

essa insensatez tamanha

que foge ao lume.

 

então direi que é certo

que morro um pouco mais

a cada dia

se a veracidade das notícias

pouca importa.

(elas ecoam, cada vez mais sórdidas)

cegam

e voam

cada vez mais longe.

 

sei que morro.

e a cada noite sobrevoo

e amplio

o que já vi dessa paisagem.

pra renascer

(ainda em estado de choque)

a cada manhã que explode.

asas cada vez mais rijas

e uma vontade enorme.”

Lia Sena

Poesia Baiana

 

 

“I/II”

“i.

é pelos pés de meu avô que entendo a vida.

morto de cima de nove décadas esculpidas

nas rachaduras das solas duras, naquele

mesmo quarto de estreitos e sonhos.

caminho nos cascos a figurar seu povo,

na herança do sangue no olho

que o eco de sua voz ainda vive.

é pelos pés do morto, numa cama de pau,

que vejo a luz do dia chegar.

o choro, a reza, a morrinha de paz que fica

ii.

meu pai chegou à capital menino. de domingo

a domingo perdeu o que hoje não consegue mais lembrar.

veio para tentar a vida e ficou – foram as primeiras frases

que li naquelas solas duras de pés juntos, como os de quem reza.

era o título de um texto que continuava – depois fui eu

a partir para Lisboa em busca da manilha e o libambo que idealizei.

ecos em silêncio vindos de outra existência, idas de 1800, ou não,

ou de um call center, atendendo às ligações e sendo mandando de volta

a cada três minutos, recebendo ecos de outras partidas.

quando meu pai veio para a capital tinha a metade de mim,

a outra descobri quando retornei de Portugal.

há mais ou menos quarenta anos ele chegava,

após quatro eu voltei para o Brasil.

as rachaduras nas solas duras de meu avô

escreveram estas palavras também.”

Tiago D. Oliveira

Do livro As solas dos pés de meu avô, Ed. Patuá, 2019

Poesia Baiana

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