“À Vela”
“então direi que é logro
o que me roubam um pouco
a cada dia.
a fantasia que não vinga
o sonho que arrefece
a alegria que evanesce e escorre.
então direi que é sombra
essa legião bipartida
e louca
que sangra e entoa
cânticos desconhecidos.
a passos largos marcha
em torno de um abismo.
então direi que é cíclica
essa vertigem insana
que atordoa e conduz
o rebanho.
essa insensatez tamanha
que foge ao lume.
então direi que é certo
que morro um pouco mais
a cada dia
se a veracidade das notícias
pouca importa.
(elas ecoam, cada vez mais sórdidas)
cegam
e voam
cada vez mais longe.
sei que morro.
e a cada noite sobrevoo
e amplio
o que já vi dessa paisagem.
pra renascer
(ainda em estado de choque)
a cada manhã que explode.
asas cada vez mais rijas
e uma vontade enorme.”
Lia Sena
Poesia Baiana
“I/II”
“i.
é pelos pés de meu avô que entendo a vida.
morto de cima de nove décadas esculpidas
nas rachaduras das solas duras, naquele
mesmo quarto de estreitos e sonhos.
caminho nos cascos a figurar seu povo,
na herança do sangue no olho
que o eco de sua voz ainda vive.
é pelos pés do morto, numa cama de pau,
que vejo a luz do dia chegar.
o choro, a reza, a morrinha de paz que fica
ii.
meu pai chegou à capital menino. de domingo
a domingo perdeu o que hoje não consegue mais lembrar.
veio para tentar a vida e ficou – foram as primeiras frases
que li naquelas solas duras de pés juntos, como os de quem reza.
era o título de um texto que continuava – depois fui eu
a partir para Lisboa em busca da manilha e o libambo que idealizei.
ecos em silêncio vindos de outra existência, idas de 1800, ou não,
ou de um call center, atendendo às ligações e sendo mandando de volta
a cada três minutos, recebendo ecos de outras partidas.
quando meu pai veio para a capital tinha a metade de mim,
a outra descobri quando retornei de Portugal.
há mais ou menos quarenta anos ele chegava,
após quatro eu voltei para o Brasil.
as rachaduras nas solas duras de meu avô
escreveram estas palavras também.”
Tiago D. Oliveira
Do livro As solas dos pés de meu avô, Ed. Patuá, 2019
Poesia Baiana
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