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Conto de Natal 2020


Era uma vez uma Estrelinha que não sabia para onde ir.


Estava-se a 23 de dezembro e a noite era fria.


Quando a noite de Natal se aproxima, as estrelas, entre si, distribuem as casas que vão iluminar. A cada uma, dos milhares de estrelas do céu, está destinada uma casa.


As estrelas guiam-se pelas emoções das pessoas. Assim, para desbravar o caminho até à casa que deve esperá-la, uma estrela procura no âmago das pessoas que lá vivem um rasto de luz que a conduz até lá.


O que estava a acontecer é que a Estrelinha, sem saber porquê, e culpando-se pela sua incompetência, não conseguia sentir as emoções da casa que devia iluminar.

A culpa, porém, não era dela. Na Terra, nesse ano, tudo estava diferente e as emoções das pessoas eram difíceis de entender. O medo tomava conta de muitos corações, a par com as saudades, as angústias, o cansaço e as frustrações. Pelo mundo inteiro as cidades estavam mais escuras e mais tristes, quase despidas das iluminações festivas, do corrupio das gentes, dos abraços calorosos, dos jantares de grandes grupos galhofeiros.


Também não havia o entra e sai nas casas, a desejar boas festas, a deixar prendas. Não se via a azáfama das compras de última hora. Tudo estava estranhamente sossegado.


As famílias e aqueles que as não tinham, tentavam conformar-se com a realidade que os separava uns dos outros, que os deixava um bocadinho mais desolados e mais sozinhos. Era quase Natal, mas estava difícil o mundo preparar-se para a festa. E isso dificultava o trabalho das estrelas.


A esta Estrelinha, em particular, calhava-lhe um prédio na zona habitacional de uma pequena cidade, junto à costa.


Por essa hora, no tal prédio de quatro andares de uma rua iluminada apenas pela fraca luz de dois candeeiros, reinava o silêncio. Ou quase. Por vezes ouvia-se a tosse asmática do velhote solitário do 1.º esquerdo. Ou, no 3.º direito, a rabugice de uma criança que era calada pela pouca paciência da mãe, enfermeira, preparando-se para sair para o turno da noite. Ou, no rés-do chão, um jovem casal alternando disposições, entre insultos ásperos e amuos obstinados. Escada abaixo, escada acima, faltava a mansidão e o espírito natalício.

No 2.º esquerdo, uma menina sentada à janela olhava a rua. Era pequena, não conhecia ainda a palavra nostalgia, mas era isso que sentia e que lhe fazia doer a barriga. Gostava muito do Natal. Da família reunida em casa dos avós, que cheirava a canela, açúcar e bacalhau. Da confusão de vozes e embrulhos. Dos cânticos desafinados, acompanhados à viola pelo tio. Das brincadeiras com os primos, a preencher as horas até à meia-noite, enquanto os adultos conversavam, lavavam loiça e bebiam vinho do porto. E depois, a alegria dos presentes, o brinquedo novo, torcer o nariz ao pijama que saía de um pacote. Gostava dos vestidos bonitos e dos laços no cabelo para ir à missa no dia seguinte. E da mesa comprida, na sala, com a toalha de renda e velas acesas nos castiçais.


Mas do que a menina mais gostava, era precisamente da noite de 23 de dezembro, quando iam chegando todos a casa dos avós e, depois do jantar, se juntavam na enorme cozinha a pôr de molho o peru, a fritar coscorões, a demolhar o bacalhau. E enquanto trabalhavam, bebiam vinho quente e cantavam. E nesse aroma que se elevava das canecas e das vozes roucas, antecipando a chegada do Deus Menino, ia-se fazendo o Natal.


Porém, nesse ano, não iam poder juntar-se. Passariam a consoada cada uns nas suas casas. Tinham criado um grupo numa plataforma digital para se reunirem em videoconferência e partilharem com os avós, sozinhos na casa grande, o Natal. A mãe estava a esforçar-se para que, apesar de tudo, fosse uma festa bonita, mas a menina via que ela também estava triste.


A menina olhou para o céu e as estrelas pareceram-lhe mais distantes, pálidas na lonjura da noite.

Da cozinha chegava o cheiro das rabanadas que a mãe estava a fritar e conseguia ouvir o pai, no quarto ao lado, a adormecer o irmão com uma cantiga. E era uma cantiga de Natal. Falava de estrelas, do Menino que era Rei, de alegrias na terra inteira. Era uma cantiga de que ela gostava. Que costumavam desafinar juntos. A mãe também deve ter ouvido porque, lá da cozinha, começou a cantar.


Então, ela própria, bateu palmas e cantou também. Abriu a janela e cantou alto, sem receio de acordar o irmão, pois, apesar de não saber explicar porquê, sentia que isso não tinha importância. E não tinha, pois, o pai entrou no quarto, com o irmão ao colo, e juntou-se a ela na serenata para a rua.


Na cozinha, a mãe abeirou-se da janela e pondo a cabeça um pouco de fora, a espreita-los, sorriu e acompanhou, mantendo, vigilante, um olho nos fritos.


E foi assim que aconteceu. No prédio da frente também se abriu uma janela e um casal com os filhos, começou a cantar. No 1.º andar, o velhote asmático parou de tossir e veio à janela, pronto para reclamar contra o barulho, mas comoveu-se e não conseguindo, cantou. A enfermeira alisou a saia branca, voltou atrás para abraçar o filho e, quando saiu a porta do prédio, olhou para cima, acenou e foi até ao carro a cantarolar. O casal do rés-do-chão esqueceu-se porque discutia e acendeu velas no parapeito. Ele passou o braço nos ombros dela e trautearam baixinho. Nas janelas foi aparecendo mais gente e foram brilhando mais velas e mais luzes. As cabeças espreitaram e cantaram e aquela rua, com dois fracos candeeiros, encheu-se de cores e de sons e de alegria.


Entretanto, lá em cima, a Estrelinha sentiu uma cócega no sítio onde as estrelas teriam o estômago e, despertando do seu desalento, viu o rasto de luz que subia da Terra. Sem mais demoras, pôs-se a caminho, na sua primeira missão.

Ia a meio da viagem, quando avistou uma estrela mais velha que, abrandando o voo, quedara-se a contemplar as ruas da mesma cidade. Ao sentir a Estrelinha aproximar-se, a Estrela Veterana rodou um pouco para a observar e, sorrindo, perguntou:


- É a primeira vez que vens?


- Sim – respondeu a estrela pequenina – e foi difícil encontrar o caminho. Não conseguia sentir o feixe de emoções da minha casa.


- Este é um ano mais difícil, Estrelinha. As pessoas têm os sentimentos baralhados. Nuns dias sentem alívio porque continuam bem. Noutros estão desesperadas. Numas horas decidem ser gratas e pacientes. E pouco depois, por qualquer coisita, perdem a compostura. Gritam e zangam-se porque sentem falta de abraços. Afastam outras porque não suportam as saudades. Têm medo. Querem muito que a vida volte a ser como era antes. E não sabem se, quando isso acontecer, elas próprias vão voltar a ser o que foram. Algumas querem crer que ficaram melhores depois de tudo o que passaram. Outras acreditam que esse tudo rapidamente será esquecido. Enfim, estão confusas, as pessoas. Mas apesar disso, Estrelinha, as pessoas têm uma capacidade magnifica de se tornarem maravilhosas, brilhantes, generosas, quando querem. E uma melodia, uma voz, um sorriso, consegue transforma-las, de repente, em seres radiantes.

A Estrelinha agradeceu e seguiu a sua viagem. À medida que se aproximava do seu prédio, sentia-se cada vez mais feliz, contagiada pela felicidade que por lá se cantava. E assim, uniu a sua luz à daqueles corações e lá permaneceu durante todas as noites em que durou o Natal.


Conto de Cláudia Quaresma


Fotos de Tiago Lourenço

@the.tiagolourencoph








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