Me lembro muito bem que o simples olhar causava em mim uma espécie de estranheza. Ainda ontem todos nós éramos sinônimo de brincadeira. De repente, o olhar masculino mudava a forma de olhar. Houve dentro de mim o aviso sobre isso, o clic. Alguma coisa era diferente. E a brincadeira comum, o colo – várias coisas que eram parte do dia a dia – continuavam as mesmas, mas sendo diferentes. Como que ganhando um detalhe ainda inexplicável.
Acho que, além de menstruar, este é o detalhe que começa a fazer parte da nossa vida, na puberdade/adolescência. Puberdade quando ele entra na nossa vida. Adolescência, quando a gente aprende a conviver com ele.
O que talvez os homens não entendam, é que é meio aflitivo uma coisa tão invasiva começar de uma maneira tão repentina a fazer parte da sua vida. Num momento todos os colos e brincadeiras são bons e aceitáveis. No outro, alguns “mudam de lado” – ficam estranhos, gulosos e inexplicáveis. Mãos que pegam diferente. Olhos que olham diferente.
Ah, sim as crianças percebem. Mas não sabemos como nomear desejo, lascívia, luxúria.
Pra nós, aqueles peitos e pelos são novidades que mais atrapalham do que ajudam. Mas, para além deles, para além de absorventes e cólicas, a memória principal é o olhar que de alguma forma tornava estranho, deformado e feio todo aquele crescer.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
A mulher adolescente tem tremendas transformações interiores e exteriores. A menstruação é mais do que suficiente para lidar, não precisava de gozo e brincadeiras em volta desse processo por parte de quem nada sabe do que fala. Homens jovens ou adultos precisam saber melhor do que se trata para serem capazes de colaborar em vez de atrapalhar. Chega a ser patético assistir aos comentários dominantes da sociedade, mas totalmente deselegantes e de falta de informação. E antigamente não havia internet. Ainda se podia de alguma forma entender. Mas agora? Com internet?
Menina que fica com corpo de mulher é outro passo igualmente difícil. A sociedade, diga-se os homens de qualquer idade, que acham que tudo podem, avaliam a mulher jovem pelo aspeto mais mulher ou mais menina. E quando sua imagem é de mulher, se jogam, se insinuam, instalam uma sensação de que você está sendo a eleita e não deve recusar suas propostas. Recusar seria nunca mais ter oportunidade. Recusar seria passar a ser considerada desigual, indesejada, “anormal”. Muitas meninas mulheres não querem nem saber e até agradecem essa “exclusão”, porque nada significa na vida delas. Sabem bem o que querem, quem querem e quando querem. Mas muitas, demasiadas, ficam inseguras, ficam com medo, não querem ser mais uma vez “nada” nem “ninguém” – já o são na família, na escola, nos amigos, nos vizinhos, eu sei lá... – e colocam o pé numa lama que nunca mais as larga, que as empurra para baixo, mais abaixo e mais abaixo. Até nem saberem quem são. Com 13, 14, 15, 16, 17 anos...
Eu desejo todos os dias que estas meninas mulheres não se percam de si. Desejo que não liguem aos comentários miseráveis que ouvem todos os dias, aos comentários que não ouvem mas sabem que existem. O mundo não é o que os outros dizem. Desejo que consigam dizer os primeiros “não” bem cedo, para serem elas as donas do seu destino. Desejo que acreditem em si. E que mesmo que escorreguem, que saibam que tem sempre volta. Tem sempre volta.
Ana Santos, professora, jornalista
A adolescência é um mundo. Não, é todo um universo. É altura das experiências, dos riscos, das descobertas. Dos dramas e enganos. Das desilusões que parecem eternas, mas terminam no fim da semana. Tudo é ampliado. Os amigos são a coisa mais importante. Pertencer ao grupo é fundamental. Sair debaixo da asa dos pais é um imperativo para qualquer adolescente. Ser livre, testar os limites.
Para os pais, é um tempo complexo. Entre as variações de humor, as exigências de autonomia e as angústias quando se afastam do ninho, há todo um leque de riscos a ponderar, no caminho para o equilíbrio entre protege-los e deixa-los crescer.
Se a adolescente for uma rapariga, a somar a todas as preocupações, outras surgem. O mundo lá fora torna-se mais perigoso. Uma pessoa, por ser do sexo feminino, está mais sujeita a sofrer algum tipo de agressão, seja por parte de desconhecidos, seja pelo namorado, seja por parte de um familiar ou de um “amigo”. Desde o machismo à misoginia, a violência sobre elas pode cobrir-se de inúmeras capas.
Portanto, sim, é mais perigoso para uma rapariga andar livremente na rua. A uma rapariga exige-se que tenha especial atenção ao que veste, ao que bebe, quanto se move quando dança, para quem sorri, quão elevada é a sua gargalhada, pois qualquer exuberância pode ser encarada como um convite para aproximações que ela não deseja. E depois lá vem o famoso “ela pôs-se a jeito”. Vamos deixar isto aqui bem claro: NENHUMA RAPARIGA SE PÕE A JEITO PARA SER ABUSADA. Seja de que forma for. É exatamente por isso que se chama “ABUSO”. Seja sexual, de poder, de força, do que for.
Infelizmente, este é um ponto que, para muitos, continua a não ter a claridade transparente que devia e então, o que fazer?
Aqui surge um dilema: A prioridade é ensinar as raparigas a defenderem-se ou os rapazes a comportarem-se?
É essencial que as meninas saibam defender-se, essencialmente por duas razões: a primeira é obvia, saber defender-se pode fazer a diferença numa situação de violência. A segunda é que, ter a perceção de que sabe defender-se, é um fator de autoconfiança. É benéfico uma rapariga ter armas que lhe permitam reagir e sair ilesa de uma situação de ameaça à sua integridade física. Crucial também, é que saiba defender-se de agressões verbais, comportamentos autoritários e ataques psicológicos. Ou seja, importa que seja ensinada a ter autoestima suficiente e confiança em si própria para sair de situações em que não é respeitada.
Mas mais importante (ou tanto quanto) é ensinar aos rapazes que há comportamentos que não são admissíveis. Há que ensinar-lhes que o género não distingue as pessoas, que ser diferente não significa desigualdade. Que fazer piadas e comentários que humilhem ou reprimam uma rapariga nunca tem graça. Que namorar não significa ter posse sobre outra pessoa. Que não se impõe o que outra pessoa não quer. Nem se pressiona ou coage em prol dos próprios desejos. Que “não” significa “não”. E é preciso responsabilizar pelos comportamentos errados. A culpa não é da rapariga quando ele age mal. A culpa é dele. Também não é dos amigos que incentivaram. Nem é do álcool. A culpa é dele. Só dele.
Por último, há outro valor que devemos ter sempre a preocupação de transmitir: a empatia. Aquele cuidar que transmitimos às meninas, desde pequeninas, temos de transmitir em igual dose aos meninos, para eles, quando crescerem, terem interiorizado que, numa relação, cada um cuida do outro, com carinho, com amor, com respeito, fazendo todo o possível para não magoar.
Seja a namorada, a irmã, a amiga, ou a rapariga que passa na rua, de minissaia.
Cláudia Quaresma, convidada
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