Uma pergunta inimaginável quando vivi meu primeiro genocídio de vida real - o da AIDS - mas que depois da COVID, ganhou outro contorno e dimensão.
Como todo começo, embora todos estivessem vendo e apontando na direção da morte - já que é impossível de errar, quando pessoas começam a morrer ao seu redor - quem viu, fingiu que não viu. Muito tempo se passou vivendo o silêncio que se pergunta na escuridão do medo... e a doença apenas foi-se espalhando. Como ficava encubada por anos, as pessoas adoeciam de coisas inimagináveis. Iam adoecendo, mais, mais. Doencinhas de crianças; sapinho na língua. Febres chatas... Ai, cada fraqueza...
A ciência aprendeu a dar alarmes mais altos e nós não aprendemos a ouvir alarmes e fazermos coisas úteis. Continuamos a perder um tempo precioso negando e acusando, ao invés de perguntarmos finalmente "O que é pra fazer agora, qual é o passo 1"? No caso da AIDS, a doença Gay, o câncer Gay, qualquer coisa Gay - o que marcou foi a acusação, muito mais do que servir como uma identificação de proteção - ou seja, na prática, a sociedade não fez nada, não perguntou nada. Achou, inferiu que era algum tipo de genocídio contra pecadores "enviado por Deus" - sempre essa de colocar Deus no meio e resolver sem perguntar. Só pegava em Gay, a culpa era ser Gay - e muitos mais morreram. Junto com "os Gays, a culpa tem que ser dos Gays", etc - havia o grupo dos viciados - mas a sociedade também não perdeu 1 minuto se perguntando o que os dois tinham em comum. Afinal, eram todos pecadores mesmo e "para além dos dedos em riste", nada se fez.
Mas os grupos de risco iam mudando com o tempo, por algum motivo que a sociedade ouvia, mas não queria saber. Tinha a ver com sangue. Bem, entraram no círculo de fogo os hemofílicos e depois... os héteros que traíam seus "laços sagrados de matrimônio" transando sem camisinha. E a praga caiu no mundo hétero também. Só aí a sociedade parou de maldizer e viu. Perdemos muitas pessoas. Gênios, astros, mendigos. Pessoas. O mundo se esvaziou de muita gente interessante, se entristeceu e nós mudamos a nossa forma de ver o sexo, que passou a existir mediante a existência da camisinha. Vieram os coqueteis e a nova geração simplesmente achou que eles valiam como vacinas e começou um "descarte do uso das camisinhas", na prática. Mulheres de mais de 50 anos, casadas, entraram no grupo de risco. E gays. E adolescentes héteros. Se a vacina vier, finalmente obteremos uma resposta preventiva real e não mental - coquetel não é vacina.
Veio a COVID e a forma de agir não evoluiu nada. A culpa ser "dos espiões chineses que experimentaram um vírus mortal no mundo ocidental" é tão "controverso" e inútil quanto Deus mandou um vírus como castigo. Mas colou de novo e nós perdemos muito tempo antes de colocarmos as máscaras e pararmos de usar discursos inúteis. Outro genocídio nascido da falta de cuidado político; mas também porque a sociedade se mantém deixando isso acontecer. Nós deixamos essas coisas acontecerem. Porque na hora de aparecer o político que diz "matem essa classe, essa raça, esse gênero", há sempre os que dizem sim. Não se diz sim pra morte. Não sem luta. E a nossa luta, nas duas pragas que na minha vida vi, se chamam vacinação. Uma ainda não veio, mas virá pra salvar todos os grupos e a outra veio e quem "acha que abala ao questionar", na verdade pode morrer, sumir, desaparecer - os sem vacina estão em risco.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
A realidade... Existem tantas realidades que deixam a pessoa confusa. Temos uma necessidade de formatar o mundo da forma que conhecemos, para sabermos onde estamos. Para termos os pés no chão. Mas quando temos a possibilidade de conhecer outras realidades, precisamos reorganizar tudo de novo. E de novo e de novo. É muito bom conhecer essas outras realidades, para não sermos pessoas fechadas no nosso mundo, cheias de preconceitos, aprendizagens padronizados. Somos pessoas melhores se o fizermos. Mas, lamento informar os mais distraídos, como eu fui muitos anos, o primeiro impacto é doloroso. E precisamos fazer a escolha de ficar no nosso mundo conhecido ou aceitar que existem outras realidades e encontrar um consenso positivo dentro de nós. Não para deixar de ser o que somos, mas para afinar, corrigir, adaptar.
Aqui em Salvador, uma percentagem muito elevada de jovens adultos tem Aids. Assustadoramente elevada. Já trabalham, alguns têm seu próprio negócio, e/ou estudam na faculdade. São muito inteligentes, muito criativos, alguns uns gênios. Senhores e senhoras do seu nariz, com carisma, ninguém lhes diz como devem viver a sua vida. E, dão muito bem conta de si. Mas, espantosamente, um número demasiado elevado, contrai a doença. Quando podemos conviver com estas populações, dando os cursos através da nossa produtora A Cor da Voz, ou em parceria com outras produtoras, é muito frequente faltas para ir ao médico, para fazer exames, procedimentos médicos complexos. Pessoas adultas jovens, com bom aspeto, lindos, com ar saudável. Primeiro você acha que são muito cuidadosos com a saúde e fica impressionada positivamente. Depois, um dos amigos, um dia, sem querer, deixa sair uma informação que desarma toda a discrição. Todas as faltas, exames, muito frequentes, são as consultas obrigatórias, a idas ao centro médico para recolher seus medicamentos, etc. Obrigações do sistema, não desejos nem responsabilidades. Mas não é um, nem dois. É um número assustadoramente elevado. Um choque. Um tapa na cara. Uma sensação amarga de que a vida afinal não melhorou tanto assim. As melhorias enormes nos medicamentos e formas de combater a doença, a descoberta da vacina, afinal, deixaram também os jovens mais despreocupados. Já sabem que não morrem e que serão cuidados. Que os governos e o seu sistema de saúde cuida deles. Deixaram de ter medo e preocupações. Ou nunca tiveram. Não viveram o surgimento da Aids, toda a destruição que ela trouxe, morte, medo, etc. Viver para aprender. Uma realidade que nunca imaginei presenciar, nem nos meus piores sonhos julguei existir. A imaginação não consegue superar as realidades que se escondem debaixo desta paz social onde todos parecemos viver...
Ana Santos, professora, jornalista
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