A Casa, a Família e o Gato
UM CONTO DE QUARENTENA
Episódio 8
19 horas e 0 minutos
São horas de ver o vídeo do treino que é enviado diariamente pelo ginásio para o seu e-mail. A Mãe senta-se em frente ao computador, com um papel e uma esferográfica e anota os exercícios e as repetições que o treinador exemplifica no vídeo.
Antes de começar a treinar, adapta o espaço da sala afastando a mesa de jantar para o canto e organiza todo o material necessário. Dispõe a esteira e pesos emprestados pelo ginásio, pousa a garrafa de água, desliga as notificações do telemóvel e põe a tocar alto a mesma lista de músicas que ouvia lá. Durante o tempo que dura o treino isola-se do que a rodeia e liberta, juntamente com o suor que lhe escorre pelo corpo, toda a tensão que acumula ao longo do dia. Treina sem descanso, até lhe custar respirar e todo o corpo doer, e assim esquece as outras dores que lhe prendem a respiração tantas vezes. Nessa hora não pensa em vírus, em desinfeções, em teletrabalho, nem em saudades.
Por momentos alheia-se até das pessoas que consigo partilham a casa.
São já muitos dias limitados ao mesmo espaço e a ver sempre as mesmas caras. O tempo vai passando de forma relativamente tranquila e ainda ninguém teve vontade, pelo menos evidente, de apertar o pescoço ao próximo. Estabeleceram algumas rotinas que ajudam. Cada um tem o seu local de trabalho independente que permite autonomia e concentração durante os períodos de trabalho. As tarefas domésticas, as complicadas rotinas de compras, as entradas e saídas, foram devidamente organizadas entre os três e definidas algumas regras e comportamentos que todos teriam de adotar, sendo a Mãe a defensora férrea da sua observância, o que faz frequentemente o Filho revirar os olhos e o Pai resmungar entre dentes.
Mas, apesar da pacatez com que se vai vivendo, a Mãe sente falta de muita coisa. Falta-lhe a conversa despreocupada com as amigas nos almoços de quinta-feira, falta-lhe fazer madeixas e ir à manicura, falta-lhe o chão áspero e o cheiro do ginásio, falta-lhe calçar as luvas de boxe, em vez das de borracha para fazer limpezas. Precisa de se sentar numa esplanada, sozinha, mas rodeada de gente, com as pernas ao sol, um livro na mão e um abatanado a fumegar. Há dias em que se sente como um bicho numa jaula e só deseja que a porta se abra para ir à vida, sem destino marcado, sem hora de regresso, sem limites de percurso.
O Pai, mais do que tudo, sente falta do neto e do golfe e o Filho sente falta da namorada e da Queima das Fitas que não vai chegar a haver.
Quando casaram, ou quando resolveram partilhar a mesma casa, os casais não pensaram que iam ser obrigados a passar vinte e quatro horas por dia e sete dias por semana, quase exclusivamente um com o outro ou, nalguns casos, com crianças pequenas aos berros a reclamar atenção, ou crianças em idade escolar com necessidade de acompanhamento constante para realizar as suas tarefas. Quando prometeram que ficariam juntos para sempre, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, ninguém lhes disse que seria também na liberdade e no confinamento.
Quando tem tudo preparado, já com a música ligada, a Mãe começa a fazer o aquecimento. Apesar de não estar ninguém a verificar, segue aplicadamente todas as etapas do treino, com a mesma disciplina com que o faria no ginásio. No hall, enquanto corre subindo e descendo os degraus da escada para o quarto, grita incentivos a si própria e repreende-se se acha que está a ser lenta. Quando o cronometro chega ao fim, dobra-se para a frente, ofegante, mais uma vez sem reparar na caixa de cartão que permanece no canto. O Pai, ao mesmo tempo, treina na sala. Antes do confinamento praticava natação e golfe, mas com todos os equipamentos fechados, teve de arranjar outras formas de se manter ativo. De manhã, tal como a Mãe, vai correr ou caminhar, e ao final da tarde também pratica diariamente o seu esquema de exercícios. Esta disciplina mostra já resultados que o deixam vaidoso e a Mãe incentiva-o, orgulhosa.
20 horas e 58 minutos
Ao jantar conversam sobre um casal amigo que perdeu os empregos e sobre uma notícia que viram no jornal local relativamente ao aumento do número de refeições que a paróquia está a disponibilizar face à complicada situação económica que cada vez mais gente atravessa. A senhora da mercearia organizou uma recolha periódica de dinheiro entre os vizinhos para irem adquirindo e enviando à paroquia os géneros alimentares que fazem mais falta. Hoje enviaram setenta pacotes de leite e dezenas de caixas de cereais de pequeno-almoço. Amanhã irão entregar caixas de fruta e legumes frescos para a sopa. O confinamento obrigatório, imposto pelo estado de emergência não está a ter o mesmo impacto em toda a gente, não estão todos a passar pelas mesmas dificuldades. Há quem diga que aqueles que têm mais recursos financeiros ou conseguem manter-se em teletrabalho sem colocar o emprego em risco, como é o caso do Pai e da Mãe, acham a quarentena cómoda e relegam a economia para segundo plano, ao contrário dos que têm o emprego, a casa, os negócios, em risco eminente e que preferiam enfrentar o risco do vírus e voltar ao trabalho. Dizem que é uma tempestade em que há dois grupos em barcos muito diferentes e que, ao passo que os primeiros aproveitam o tempo de confinamento para refletir, ver filmes e descansar, outros estão já a afundar-se.
A Mãe fica muito zangada quando ouve essas coisas. Tem à sua volta muita gente em dificuldades várias, financeiras, logísticas ou profissionais. E também gente que se coloca diariamente em risco para fazer as coisas continuarem a funcionar, que vai tratar doentes, vender fruta, levar refeições a quem precisa. Sabe o esforço sobre-humano que está a ser feito nos hospitais para conseguir que pessoas como o seu pai consigam possam manter os tratamentos com a segurança necessária, o que só será viável enquanto o número de casos de doentes de Covid-19 estiver relativamente controlado. Sabe que têm um Filho que devia terminar a licenciatura daí a uns meses e que é agora incerto se, e como, isso vai acontecer, e a que despesas extra vai obrigar. Sabe que o Pai não vai provavelmente ter o seu habitual emprego de verão e que essa quebra no rendimento vai fazer diferença no resto do ano. Sabe que o filho mais velho estará meses em casa sem trabalhar porque o mundo da música e dos espetáculos estará indefinidamente suspenso. Tudo isso lhe tira o sono.
Evidentemente que há situações muito mais dramáticas do que outras. E a Mãe sabe que pertencem ao grupo dos que têm mais sorte e que por isso devem auxiliar naquilo que podem. Seja pagando o ordenado à empregada que não pode vir trabalhar, pagando o ginásio apesar de fechado, pagando as propinas, fazendo compras e levando refeições a quem precisa, continuando a trabalhar com honestidade e dedicação, em suma, tentando minimizar o impacto negativo desta crise sem precedentes. Admira a capacidade que as pessoas têm tido para reinventar os seus negócios e a fazê-los continuar de alguma forma, como resistem estoicamente e encontram ânimo para si e para dar aos outros e aborrece-a a mesquinhez, os rancores e as discussões gratuitas.
Há gente sem salário, gente a passar fome e pessoas tão sozinhas que não sabem se é do vírus ou da solidão que têm mais medo. A Mãe acha que, mais do que entrar em discussões sobre a dimensão do barco em que cada um navega, importa fazer alguma coisa por aqueles que mais precisam. A Mãe acredita que não serve de nada estar entre os privilegiados se não puder usar desse privilégio para dar alguma coisa a quem tem menos. Se há gente a ir ao fundo, estender a mão para os trazer à tona, se tem um barco maior, apertar-se para dar lugar a mais gente, se há embarcações danificadas pegar nas ferramentas e ajudar a consertar.
No entender da Mãe, o problema nunca é o tamanho do barco em que se navega, é se as pessoas querem usá-lo para salvar vidas ou para servir de embarcação de recreio.
Episódio 1
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Episódio 6
Episódio 7
A Casa, a Família e o Gato
UM CONTO DE QUARENTENA
Cláudia Quaresma
Fotos de Tiago Lourenço e de Cláudia Quaresma
@the.tiagolourencoph
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