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A Casa, a Família e o Gato (Episódio 7 de 9)

Atualizado: 19 de dez. de 2020


A Casa, a Família e o Gato

UM CONTO DE QUARENTENA

Episódio 7


17 horas e 33 minutos

A Mãe dá por terminado o dia de trabalho. Alguém bate à porta do quarto e ela, instintivamente, esconde algo debaixo do caderno. São as decorações que está a fazer para o bolo de aniversário do Pai, que fará anos no próximo sábado e que iria ter uma festa especial este ano. Ela já tinha decidido fazer um bolo de aniversário com figuras em pasta de açúcar representando as coisas que ele mais gosta, mas não tem como adquirir o material necessário e por isso está a desenhar as figuras em cartolina branca e a pintá-las com lápis de cor.

Afinal é o Filho que entra. Ela levanta o caderno e mostra-lhe as figuras que já tem. Ele senta-se na borda da cama e discutem os dois como vão organizar a festa. Vai ser na garagem, para os outros filhos e os netos poderem vir cantar os parabéns. O Pai tem dois filhos mais velhos e dois netos, que vivem nas suas casas e que apenas tem visto à minha porta. Ninguém entra na casa dos outros com receio de levar ou trazer o vírus na roupa ou nos sapatos. A garagem é um espaço amplo, que permite estarem todos devidamente distanciados uns dos outros, calçados e sem conspurcar o chão desinfetado do interior das 14 habitações onde agora só se anda de pantufas ou descalço. À porta de muitas casas há um cesto, uma caixa, um canto, para se fazer a troca de calçado ao entrar e sair, evitando contaminações. Este era, de resto, um hábito há muito adotado nos países do norte da Europa e creio que vai sobreviver à pandemia, uma vez que as pessoas têm apreciado o quão higiénico se revela.

A Mãe pergunta ao Filho o que lhe parece convidarem os vizinhos para cantar os parabéns e comer uma fatia de bolo. Concordam que é simpático, que animaria a festa e que com o relacionamento que têm agora é uma atitude natural. Por outro lado, a Mãe tem receio de os colocar numa situação constrangedora em que se vejam forçados a aceitar o convite sem se sentirem confortáveis. Debate-se com imensas dúvidas relativamente à partilha de loiça, se deve ou não oferecer bolo, se lhes dá copos de plástico ou se parece indelicado não lhes servir o espumante numa flute de vidro para brindarem em conjunto. São tudo questões que têm de ponderar, divididos entre os comportamentos sociais que julgam adequados e aqueles que vão nascendo, fruto do que a nova realidade impõe.


18 horas e 21 minutos

A Mãe vai ao quarto para vestir a roupa de treino e aproveita para regar as plantas do terraço. O Gato acompanha-a, cheira os vasos e começa a mastigar as folhas de uma planta, olhando a Mãe com ar de desafio. Ela enxota-o, com complacência, e sorri ao ver a hortência, que aqui se chama hidranja, cheia de novos rebentos. Repara também que estão a nascer dois filhos, dois minúsculos catos, no vaso do Aloé Vera. A Mãe nunca teve jeito nem gosto pela para jardinagem, apesar de ter crescido numa casa com um bonito jardim. Não gostava de mexer na terra e horrorizava-a tocar acidentalmente nalguma minhoca. Mas sempre gostou muito do exterior, do sol e de estar rodeada de um ambiente florido e harmonioso. Gosta muito dos verdes luminosos das plantas, das pétalas de cores suaves ou fortes e gosta sobretudo de rosas e catos. Diz a brincar que tem uma empatia especial com espinhos. O seu quarto, que fica no andar superior, tem uma janela grande, virada para o terraço de onde se vê a torre da igreja matriz e, com algum esforço, o mar. Apesar disso, o terraço quase não tinha uso, nos vasos brotavam sobretudo ervas daninhas, a mesa e as cadeiras estavam ressequidas pelos meses a fio expostas sem cuidado à chuva, ao vento e ao sol. Foi num dos primeiros fins-de-semana de confinamento que a Mãe concluiu que lhes ia fazer falta passar tempo ao ar livre e que, à falta de melhor alternativa, o terraço podia ser um espaço apetecível. Deitou mãos à obra e limpou vasos, varreu terra, livrou-se do lixo e pediu ao Pai para comprar tinta e pintar a mesa e as cadeiras. Era Sábado Santo, véspera do Domingo de Páscoa. Nesse fim de semana as restrições foram ainda mais apertadas e, tratando-se de um período que normalmente se celebra em família, sentia-se com maior intensidade o peso do isolamento.

Essa barreira que se interpôs entre famílias e amigos, de alguma forma originou outras aproximações e descobriram-se afinidades até então desconhecidas. Nesse sábado a campainha tocou duas vezes: na primeira, a vizinha da frente veio oferecer flores e ovos caseiros para o pão-de-ló, na segunda a vizinha do rés-do chão trouxe uma tijela de aletria ainda morna. Devia ser dia de jejum e a Mãe costuma levar esses preceitos muito a sério, mas aquela aletria cheirava tanto a limão e a carinho que ela teve a certeza que Jesus não ficaria ofendido se a comesse. E assim, sentaram-se os três no terraço acabado de arranjar, com uma toalha sobre a velha mesa, beberam chá e comeram aletria morna, viram o sol pôr-se no mar e ficaram gratos porque, apesar de tudo, estavam bem e, afinal de contas, não tão sós como julgavam.


Episódio 1

Episódio 2

Episódio 3

Episódio 4

Episódio 5

Episódio 6


A Casa, a Família e o Gato

UM CONTO DE QUARENTENA

Cláudia Quaresma


Fotos de Tiago Lourenço e de Cláudia Quaresma

@the.tiagolourencoph

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