A Casa, a Família e o Gato
UM CONTO DE QUARENTENA
Episódio 4
11 horas e 19 minutos Toca a campainha. O Pai está a tomar duche e o Filho, que, entretanto, também já se levantou, fala em voz alta com colegas da faculdade, debatendo tópicos para um trabalho de grupo. Oiço-os falar sobre “o impacto antropogénico na biodiversidade insular do Arquipélago dos Açores”. A Mãe levanta-se e vai à cozinha espreitar pela janela. Nestes tempos de isolamento multiplicam-se as compras online e a troca de encomendas e cartas entre famílias separadas, portanto não é raro o dia em que a campainha toca para se fazer uma entrega. Desta feita é da empresa de vinhos, para deixar um caixa. A Mãe sorri satisfeita, coloca uma máscara e calça-se para ir abrir a porta, enquanto agradece mentalmente à amiga que lhe recomendou este site, que faz entregas gratuitas e em menos de vinte e quatro horas. Numa altura em que as pessoas se preocupavam com o stock de papel higiénico e com o reforço dos enlatados, ela, mais avisada, fez o inventário da garrafeira. Ouvi-a dizer ao Gato: “Deus me livre de ficar em casa fechada e sem vinho tinto.” Fez contas aos dias, balanceou as birras, os amuos e as saudades e concluiu que ia precisar de se reabastecer algumas vezes e então informou-se a respeito dos sites. As compras através da internet têm ajudado a ultrapassar inúmeras dificuldades e a Mãe está cada vez mais adepta desta forma de comprar, sem filas, sem confusões, comodamente sentada enquanto explora opções e compara preços. Quando precisa ou apenas porque lhe apetece, vagueia pelo site à procura de vinhos que lhe pareçam interessantes. Não sabe quase nada de vinhos, em geral aprecia os tintos do Douro e os brancos do Alentejo e escolhe quase sempre consoante lhe agrada o rótulo. Até agora, tem-se saído bem.
Volta para dentro com a caixa e cruza-se com a vizinha da frente. Está com um ar abatido hoje e conta-lhe que é porque era o dia previsto para a chegada do filho e da nora. Vinham com os dois netos do estrangeiro para assistir ao casamento da irmã, que se deveria casar por esses dias. Conta-lhe que ainda não conheceu o neto mais pequeno, só por fotografia, que não sabe quando será possível viajar para se reencontrarem. A Mãe fala-lhe também da Filha e dos pais, do irmão e da cunhada, todos na capital, a quilómetros de distância que, apesar de serem menos, são igualmente inacessíveis. São tempos de saudades e preocupações muitas vezes não confessadas para não preocupar ainda mais aqueles que lhes são queridos, mas agora, de mãe para mãe, nos degraus da escada, deixam a emoção embargar-lhes a voz e olham com uma ternura nova para a outra que vivia do outro lado do patamar e que, até há tão pouco, era quase uma estranha. Eu não conheço o interior das outras casas e o que sei dos vizinhos que as habitam é aquilo que vou ouvindo das escadas. O elevador é muito metido na sua toca e não partilha informações que, para o seu feitio fechado, não passam de mexericos. O Gato também não conhece. De vez em quando aventura-se alguns degraus para cima ou para baixo, nas escadas comuns, não mais do que isso. Sabemos que no andar de baixo vive outro gato porque o ouvimos miar de vez em quando, mas nunca o vimos. A quarentena tem vindo a alterar a relação entre vizinhos. Na impossibilidade de estarem com outras pessoas com quem habitualmente conviviam, a premência de se sentirem menos isolados, menos sós, aproximou uns dos outros os habitantes do prédio. Ao fim de semana não é raro baterem à porta umas das outras, dando logo um passo atrás para manter a distância de segurança, a fim de oferecer uma flor, uma sobremesa, um saquinho de amêndoas pela Páscoa. A nova dinâmica entre vizinhos brotou também da necessidade de se organizarem na gestão do edifício, por exemplo, para criação de uma equipa de limpeza das escadas, agora que a empresa que prestava esse serviço deixou de o fazer. Numa altura em que, mais do que nunca, a higienização das zonas de acesso comuns é importante, o Pai tomou a iniciativa de colar um papel na entrada do prédio para que cada vizinho, se assim entendesse, dizer da sua disponibilidade para colaborar na limpeza e partilhar com os restantes o seu contacto. Assim, nasceu um sistema rotativo em que cada vizinha, no dia que lhe está atribuído, varre, ensaboa, esfrega, limpa corrimões e interruptores, até a escada estar tão perfumada e luzidia como nunca antes ocorrera. Para agilizarem a distribuição dos trabalhos de limpeza, criaram um grupo de troca de mensagens nos telemóveis, que rapidamente se tornou num fórum de partilha de receitas, fotografias dos filhos, dos netos ou do bairro, ou de um simples cumprimento. Esses pequenos gestos vão criando laços entre pessoas que passavam umas pelas outras tantas vezes distraídas, sem tempo para parar um pouco e escutar, saber se tudo ia bem. Pessoas que passavam a mesma porta da rua, estacionavam na mesma garagem, assistiam às mesmas longas reuniões de condomínio, e pouco mais sabiam umas das outras do que o nome, e por vezes nem isso. Agora, cúmplices na mesma solidão, vítimas do mesmo isolamento, unidas pelos mesmos medos, encontram amparo umas nas outras e estendem os seus mundos às escadas que partilham e das escadas fazem o centro de uma nova comunidade em desenvolvimento.
Afinal, talvez nem tudo seja mau nestes tempos. - Gato, não te parece uma coisa positiva esta nova amizade entre os vizinhos? Ele mexe as orelhas e entreabre os olhos verdes. - Eu só gosto dos vizinhos do rés-do-chão, que tomam conta de mim quando a família vai de férias e têm a gentileza de trazer sempre alguma iguaria. De resto, não percebo essa necessidade que os humanos têm de conviver. Não sabem viver sozinhos, precisam de ter sempre outros humanos por perto. Fico a meditar nas palavras do Gato. Tem razão, claro. Os humanos precisam efetivamente de interagir constantemente uns com os outros. Quando isso não acontece, quando são privados dessa possibilidade ficam taciturnos, abatidos, perdem parte da energia que usualmente os caracteriza. A vizinha do rés-do-chão, a amiga do Gato, partiu um braço na semana passada. Era o dia dela de limpar a escada. A Mãe tinha chegado da corrida e ao passar na escada a vizinha recomendara-lhe cuidado para não escorregar nos degraus molhados. Pouco depois, distraída a cumprimentar a dona da mercearia, pôs o pé dentro do balde da esfregona e caiu desamparada, o peso sobre o pulso direito. Foi uma aflição no prédio todo, que se estendeu ao outro lado da rua e à mercearia. A Mãe saiu do duche à pressa, a água a pingar no soalho, porque o telefone tocava sem cessar. Era a vizinha do prédio da frente a pedir-lhe que corresse em auxílio da outra que tinha caído à entrada. Entre vizinhos lá fizeram o diagnóstico, arranjaram gelo e designaram voluntário para o transporte ao hospital, donde ela regressou com um gesso e ordem para estar quieta durante as três semanas seguintes. E assim, num espírito de entreajuda e boa vizinhança, cuidou-se do que era necessário e rapidamente se alterou a escala de limpeza da escada.
12 horas e 23 minutos São horas de parar para o almoço. A Mãe fecha a tampa do computador e desliga o rádio. O Pai já anda na cozinha a preparar as coisas e o Filho está a começar a por a mesa. Sente- se o cheiro do assado no forno e a alface está de molho numa taça de vidro. A Mãe ainda vai sair para levar a refeição a uma senhora de idade que não pode sair de casa por pertencer aos grupos de risco. Desde que começou o isolamento, a paróquia, onde a Mãe é voluntária, organizou grupos de apoio as situações de pessoas como esta, para cozinhar para os grupos mais necessitados, para criar uma rede de Call Center para manter contacto telefónico com os que estão mais sozinhos. A cada dia há mais gente a precisar de ajuda. São tantas as famílias que perderam os seus rendimentos, são tantos os idosos que não podem sair de casa para os seus afazeres, são diariamente mais os infetados em confinamento obrigatório. Os voluntários são incansáveis e a Mãe sente-se grata por fazer parte deste grupo de pessoas a inventar disponibilidade e boa vontade, sempre com um sorriso colado ao rosto, por trás do pedaço de pano. Pega no porta-moedas, na máscara e no frasquinho de desinfetante, numa folha de papel de cozinha para segurar as maçanetas das portas, calça-se e sai de casa, depois de dar algumas rápidas indicações para os homens ultimarem almoço. Por estes dias habituou-se a andar sempre de auricular nos ouvidos quando sai de casa, para ouvir música ou para ir falando ao telefone, sem ter de lhe mexer. Assim, aproveita o caminho até ao take away para por alguns telefonemas em dia.
Episódio 1
Episódio 2
Episódio 3
A Casa, a Família e o Gato
UM CONTO DE QUARENTENA
Cláudia Quaresma
Fotos de Tiago Lourenço e de Cláudia Quaresma
@the.tiagolourencoph
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