A Casa, a Família e o Gato
UM CONTO DE QUARENTENA
Episódio 2
7 horas e 44 minutos
Deixo a Mãe bater a porta da frente e dirijo-me ao Gato:
- Gato, reparaste na caixa que está esquecida no canto do hall?
- Qual caixa? – pergunta ele simulando indiferença. Eu sei que ele reparou, porque já o vi afiar as unhas no cartão, mas está amuado com a falta das guloseimas – não reparei em nenhuma caixa – insiste.
E lá vai embora, ondulando o corpo, cauda erguida, pose petulante. Quando passa perto da caixa roça nela o lombo e continua a caminhar ignorando-me. São uns seres estranhos os gatos.
Lembro-me do dia em que ele chegou, só pele e osso, barriga inchada de vermes, olhos ramelosos, pelo baço e ralo e uma infeção respiratória já medicada pela veterinária. Era o animal mais feio que aqui tinha entrado, não se parecia nada com aqueles adoráveis gatos bebés que vemos no Facebook, acompanhados de frases para alegrar o dia. A Mãe e o Pai olhavam preocupados para a Filha, com ele no colo, toda ela ternura, e temiam que a criatura não sobrevivesse e em que medida a perda de outro animal de estimação a devastaria.
- Gato, lembras-te como eras feio e ranhoso quando chegaste? – pergunto eu com malícia. Ele é vaidoso e não gosta que lhe recordem esses primórdios da sua vida aqui, em que era
tão pouco vistoso e não sabia usar o caixote, pelo que continua a ignorar-me.
Eu aguardo, com a paciência que, nas casas, vem da firmeza das paredes. Pouco tempo depois, deitado junto ao vaso da orquídea rosa, dá início ao banho matinal. Dou-lhe alguns minutos e quando o vejo tranquilo e indolente a lamber a pata dianteira, faço nova tentativa de entabular conversações:
- A família está com alguma dificuldade em habituar-se a esta nova vida, não achas Gato? Só lhes pedem que fiquem em casa e, afinal de contas, eu sou uma casa bastante agradável, não me parece um sacrifício assim tão grande pedir-lhes que aqui permaneçam. Ele estanca subitamente, o pescoço hirto e a pata ainda esticada no ar, olha-me com os olhos verdes arregalados, brilhando de indignação e responde com um ar altivo:
- Só lhes é pedido que fiquem em casa? É muito mais do que isso, não te parece?
«É-lhes pedido para não fazer inúmeras coisas que eu não entendo, mas que lhes dão prazer, como jantar fora, ir ao cinema, ao centro comercial, a um museu, ao ginásio. É-lhes pedido para ter calma, para serem respeitadores e ordeiros. A muitos é pedido que fechem o seu negócio, que não viajem de avião, nem de comboio, nem de carro. Que deem apenas uma volta de bicicleta ou a pé, e perto de casa. Para evitarem contactos sociais, para não visitarem aqueles de quem mais gostam e por quem mais temem. Que não irrompam pela casa dos pais adentro a dar aquele abraço de que tão desesperadamente precisam. Pedem-lhes que não vão dar colo aos jovens adultos, seus filhos, que ficaram do outro lado da barreira do confinamento. Pedem-lhes não se reúnam nos aniversários, que festejem por vídeo chamada.
«E eles compreendem que é a atitude certa e necessária, pelo bem de cada um e pelo bem de todos. E fazem-no com empenho, com espírito de sacrifício e mostrando respeito e gratidão por aqueles que todos os dias saem de casa para salvar vidas e tratar doentes. Mas não é só ficar em casa!
«É, apesar dos momentos de insegurança e estupefação perante esta situação inaudita, disfarçar as lágrimas e encontrar forma de tornar os dias mais leves. É sentirem muitas saudades de tudo o que tinham e desejar que esteja tudo no mesmo sítio quando a pandemia for embora. É ficar em casa, mas cada um fazer a sua parte e contribuir para que o país não pare, seja com voluntariado ou com teletrabalho, seja a ensinar aos filhos
em casa o que não podem ir aprender à escola, ou até, nalguns casos, fazer tudo isso em simultâneo.
«É só ficar em casa, sim, mas é muito duro! Está a pô-los à prova dia após dia. Vai levá-los perto da loucura algumas vezes. Com sorte, torná-los-á pessoas melhores, mais corajosas, mais disciplinadas, mais altruístas e mais conscientes.
Olho o Gato, estupefacta. Não o imaginava capaz de tamanha empatia. Afinal ele conhece e preocupa-se verdadeiramente com a sua família. Arrependo-me de lhe ter dito que era feio quando chegou. Ele sabe, e sente-se grato por ter sido tão bem acolhido.
- Desculpa Gato – mas ele, com um gesto que seria de encolher ombros, se os gatos encolhessem os ombros, prossegue com o banho, já com o espírito liberto de considerações profundas.
8 horas e 37 minutos
A Mãe regressa. Na ombreira da porta descalça as sapatilhas que lava com um pano embebido em água e lixivia, para de seguida pendurar na marquise a arejar. O Pai, que, entretanto, acordou, está a tomar o café para também sair para o seu exercício matinal. Trocam um beijo rápido enquanto a Mãe liga o rádio e coloca a tijela com flocos de aveia no micro-ondas.
Antes de se calçar para sair, o Pai pergunta como correu a corrida e ela conta que, como estava uma manhã sem névoa, conseguia ver-se toda a linha de costa para norte, até aos guindastes do Porto de Leixões. Estava maré vaza e as gaivotas, alheias à pandemia que as rodeia, chapinhavam despreocupadas nas poças, entre as rochas, à procura de pequeno-almoço. O Pai decide que, nesse caso, também irá pela beira-mar.
A cozinha cheira a café e a Mãe decide que aquele é o melhor momento do dia. O aroma forte que se eleva da cafeteira italiana sobre o fogão, a aveia cremosa, as vozes animadas do programa matinal de rádio e o Gato sentado no banco de madeira azul, esticando a pata para ela, exigindo guloseimas, proporcionando-lhe a tranquilidade de que necessita para enfrentar um novo dia.
Eu também gosto particularmente do ambiente que reina na cozinha. Se as casas tivessem coração, ele seria na cozinha. É da cozinha que a vida flui para todas as outras divisões. Na cozinha auscultam-se os humores e os sabores da família. Quando alguém está zangado, as panelas e a loiça fazem muito barulho, as portas dos armários fecham-se com força e a porta do frigorifico é aberta com violência. Mas quando estão bem dispostos, a cozinha é um lugar alegre, com cheiros ricos e suculentos, com conversas animadas sobre o dia de cada um, com afazeres que se tornam mais leves quando partilhados. Habitualmente é a Mãe que cozinha, mas o Pai, por estes dias, especializou-se em fazer sopas e bolo de banana. No sábado passado guisou um coelho! Anda deveras orgulhoso dos seus dotes e gaba-se de ser mais organizado que a Mãe e de deixar tudo arrumado à medida que vai executando as tarefas. Ela encolhe os ombros e argumenta com a sua capacidade de fazer várias coisas em simultâneo.
A Mãe está de pé, encostada à banca, a cortar os morangos, com uma precisão obsessiva, em quadradinhos quase iguais. Depois puxa a mesa de correr e coloca sobre ela o naperon laranja, bordado pela sua mãe. Dispõe os apetrechos com cuidado, de forma a obter uma relação de equilíbrio entre a tigela de porcelana branca, o guardanapo bem dobrado, colocado imediatamente abaixo da caneca do café, e a colher perpendicular ao rebordo do naperon, alinhada sobre o guardanapo. Por que será que a irritam tanto os talheres tortos? Eu bem vejo como fica enervada quando o Pai não tem o mesmo cuidado a pôr a mesa e coloca-os enviesados ou as facas com a serrilha voltada ao contrário. Se ele visse como isso a faz bufar, certamente teria mais cuidado! Vou tomar nota para falar ao Gato neste assunto.
A Mãe é uma perfecionista, tem necessidade de controlar tudo o que a rodeia para não se sentir insegura. A realidade desconhecida e imprevisível deixa-a extremamente ansiosa, sem conseguir travar o pensamento contínuo que a mantem acordada de noite e com dificuldades em concentrar-se durante o dia. Cria todo o tipo de cenários na sua cabeça e preocupa-se com todas as hipóteses que muitas vezes nem chegam a acontecer. Para se impedir de pensar demasiado, precisa de encontrar constantemente coisas que lhe ocupem os tempos livres.
Quando acaba de comer levanta-se e começa a arrumar e a lavar a loiça do pequeno almoço. Esse é o sinal para o Gato perceber que as guloseimas acabaram e só haverá mais na manhã seguinte.
Vai tomar um duche antes de começar a trabalhar, não sem antes pegar na esfregona para passar no hall. Empurra a caixa de cartão com um pé, distraída, e não faz caso dela. Está já a fazer listas mentais das tarefas que tem para esse dia.
O Gato sobe a escada atrás da mãe. Sabe que a esta hora as portas que dão para a varanda do quarto estão abertas e é-lhe permitido ir explorar um pouco o exterior. Antes de a Mãe descer vai correr as portas até ficar apenas uma pequena abertura por onde ele não consegue passar. A família não gosta que ele vá deambular pelo telhado, e é pena, pois o meu telhado é muito aprazível para quem aprecia estar sentado a admirar a paisagem. Mas o Gato teima em perseguir pássaros e isso às vezes culmina num episódio infeliz para ele ou para os pássaros. Como tal, é obrigado a entrar.
- Gato, lembras-te quando caíste da outra varanda?
Ele estremece. Era ainda um gatinho, mas ficou-lhe uma curva sobre o nariz que o recordará para sempre dessa aventura. E que susto apanhou a Mãe quando, ao chegar a para almoçar, o encontrou no passeio com o focinho ensanguentado.
Episódio 1
A Casa, a Família e o Gato
UM CONTO DE QUARENTENA
Cláudia Quaresma
Fotos de Tiago Lourenço
@the.tiagolourencoph
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