A Casa, a Família e o Gato
UM CONTO DE QUARENTENA
Episódio 6
15 horas e 0 minutos
Na rádio passa uma música sobre a pandemia, que fala das ruas desertas e das cidades vazias. Nas notícias mostram imagens e explicam como é possível agora ouvir pássaros a cantar nas ruas de Paris, como na India o Rio Ganges leva as águas mais limpas das últimas décadas, como em tantas cidades o nível de emissões de dióxido de carbono desceu abruptamente.
Há dias afirmava-se que havia cisnes a nadar nos canais de Veneza. Apesar da notícia, entretanto, ter sido desmentida, reforça a ideia de que bastaram algumas semanas de redução na atividade humana para o planeta começar a respirar melhor. As pessoas são obrigadas a abrandar e a natureza ganha lufadas de vida.
A Mãe detém-se uns minutos a cogitar. Será que as pessoas se vão lembrar disso quando a vida voltar ao normal? Será que vão retirar algum ensinamento e, por exemplo, ponderar a utilização mais frequente de meios de comunicação e plataformas que não obriguem a deslocações constantes? Era bom que este desacelerar motivasse alguma reflexão sobre outras formas de viver o dia-a-dia. Que as pessoas descobrissem que se abrandarem um pouco o mundo não acaba, pelo contrário. Talvez desta árdua experiência pudessem descobrir como ser uma sociedade com mais respeito pelo planeta, com menos correrias e filas de trânsito, com menos consumismo desenfreado. Podia ser que as pessoas no fim se lembrassem que é bom ter tempo, que é importante conhecer melhor as suas casas e os seus vizinhos.
Suspira. Ontem conversou sobre isso com o Filho, enquanto lanchavam. Ele acha que não vai haver mudanças significativas no comportamento das pessoas. É da opinião que as pessoas vão ser muito rápidas a esquecer essas lições. Entristeceu-a um pouco perceber a falta de esperança que a juventude tem no futuro. O pouco que acreditam na capacidade 13 de mudança. Entristeceu-a mais ainda porque sabe que, provavelmente, ele está certo. Ela é da geração que foi fã de ficção científica e que cresceu a acreditar em utopias como a de criarmos um planeta de férias em Marte.
16 horas e 7 minutos
Reina a calma cá dentro, cada membro da família está sentado à sua secretária a trabalhar. Só se ouve o barulho das teclas dos computadores e a vibração das notificações dos telemóveis. De tempos a tempos ouve-se alguma conversa com colegas através de uma plataforma de videoconferência. O computador e o telemóvel tornaram-se instrumentos indispensáveis e constante ao longo dos dias de estudo em casa e teletrabalho.
A Mãe instalou uma aplicação de plantar árvores no telemóvel, que tem o intuito de refrear o seu uso excessivo. Depois de se dar início à plantação da árvore, caso se desbloqueie o ecrã, ela seca, ficando exposta na floresta como testemunha da falha. A Mãe, consciente de que estava a recorrer excessivamente ao telemóvel, sobretudo para percorrer as redes sociais e os grupos de trocas de mensagens e que isso estava a comprometer a sua concentração, instalou a aplicação. A explicação para esse fenómeno é simples: a comunicação com o exterior, quer a nível pessoal, profissional ou lúdico, fazse quase exclusivamente por esse meio. Os telemóveis acumulam aplicações de videoconferência, opções de vídeo chamadas e festas virtuais, grupos de amigos, de primos, de família, de voluntários, de vizinhos, uns para divertimento, outros úteis e alguns apenas chatos. Esta constatação leva a inúmeras questões: como teria sido estar fisicamente isolado numa altura anterior à internet? E como conseguem comunicar com o exterior aquelas pessoas que não são da geração sempre online? Como vêm os netos? Como assistem à missa? Como leem o jornal? Aquelas coisas que se conseguem alcançar com um clique e que preenchem as imensas lacunas nestes dias não estão acessíveis a todos, quer por falta de recursos, quer por falta de conhecimento. Não é fruto do acaso, ou da teimosia da idade, que as pessoas sejam as que têm mais dificuldade em manter-se confinadas às suas casas. Nem é por acaso que os adolescentes são os que melhor se adaptam a esta rotina: afinal de contas, já passavam mais de metade da vida confinados ao seu quarto, a comunicar por teclas. A geração do Pai e da Mãe está no meio termo. São dos que gostam de sentar na esplanada, frente a frente, a beber uma cerveja e a por a conversa em dia. Dos que, apesar de recorrerem a sites de venda, ainda gostam de ir ver as montras. Os que gostam dos filmes no cinema, com pipocas, apesar de serem adeptos fervorosos da Netflix. São dos que precisam dos amigos ao vivo e não apenas do outro lado de um monitor.
Episódio 1
Episódio 2
Episódio 3
Episódio 4
Episódio 5
A Casa, a Família e o Gato
UM CONTO DE QUARENTENA
Cláudia Quaresma
Fotos de Tiago Lourenço e de Cláudia Quaresma
@the.tiagolourencoph
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