A Casa, a Família e o Gato
UM CONTO DE QUARENTENA
Episódio 5
13 horas e 2 minutos
A Mãe regressa, vem com fome. Quando tem sono ou fome fica de mau humor e não vale a pena tentar falar com ela antes de lhe porem à frente o prato de sopa bem quente.
O Gato ainda tenta a sorte, roçando-se nas pernas dela a ver se tem direito a colo, mas ela nem fez caso dele. Então ele sai da cozinha aborrecido e vai esconder-se debaixo da cadeira do hall, encostado à encomenda.
Durante o almoço ouvem o noticiário e o Filho lê-lhes o relatório atualizado da Direção Geral da Saúde. Há uns dias, durante o jantar, a Mãe e o Pai tiveram uma discussão por causa da televisão estar constantemente ligada e a Mãe levantou-se da mesa e foi até à cozinha.
- Eu sei que devemos estar informados, mas não é preciso tanto! – disse quando regressou, com um timbre irritado na voz – A minha capacidade para absorver tanta desgraça tem limite! Não aguento passar as refeições a ver os funerais sem presença das famílias, os caixões em fila, os médicos à beira da exaustão. A isto ainda se juntam as dezenas de mensagens, vídeos e afins com informações sobre Covid-19! – respirou fundo, obrigou-se a acalmar um pouco e prosseguiu – Eu sei que é isso que está a acontecer. É doloroso e assustador. Desde que a pandemia se tornou tão real para nós, não houve uma única noite que tenha dormido seguida. Estou preocupada e tenho medo, mas não posso estar sempre a pensar e a falar sobre isso. Talvez seja fraqueza minha, mas preciso momentos de descanso. Acho que devemos reduzir o tempo de noticiários de forma a nos mantermos atualizados, mas não ficarmos assoberbados – suspirou e calou-se.
O Pai levantou-se e abraçou-a. O Filho pegou no comando da televisão e mudou para um canal onde passava um documentário sobre a vida dos coalas no nordeste da Austrália. Ela encostou a cabeça, deixando as lágrimas escorrerem, e sentiu-se aliviada.
Agora ouvem o noticiário durante o almoço, mas ao jantar escolhem sempre um programa diferente ou, simplesmente, deixam a televisão desligada.
14 horas e 1 minuto
A Mãe tem de retomar o trabalho. Apesar de estarem em teletrabalho, o horário é para cumprir, avisou o chefe, e tem duas reuniões por dia, a meio da manhã e a meio da tarde, para ver se tudo está a correr bem e para ver se estão todos devidamente sentados em frente ao seu computador (esta última parte ele não disse mas eu ouvi a Mãe comentar com o Pai que era para isso que serviam tantas reuniões).
A Mãe gosta do teletrabalho. Ela é um pouco individualista e dá-se bem no sossego e na solidão. Aprecia ter uma sala só para si, onde pode ouvir música sem auriculares nos ouvidos e não tem que conversar sem lhe apetecer, nem atender telefonemas inoportunos, nem falar com algum cliente que resolve aparecer sem hora marcada. Para ela, esta seria a forma ideal de trabalho e tem constatado que a sua produtividade espelha o conforto que essa opção lhe proporciona.
Mas não foi assim desde o início do estado de emergência. Quando começou o confinamento, eram obrigados a ir trabalhar presencialmente em dias alternados e a Mãe andava revoltada e ansiosa.
Acordava de madrugada nesses dias e já não tornava a adormecer. Eu via-a às voltas na cama e o Gato também sentia e vinha sentar-se à porta do quarto. A logística para sair de casa era complicadíssima. Na primeira vez, queimou a língua com café demasiado quente, partiu dois ovos que o Gato teimou em lamber do chão, misturados com a lixívia do pano com que ela tentava à pressa apanhar as claras viscosas, e andou para trás e para a frente várias vezes, constatando sempre que ainda faltava alguma coisa para poder sair em segurança. Esse dia foi particularmente difícil para ela.
A agravar a natural apreensão, o computador não estava a funcionar o que deu origem a que o seu o posto de trabalho fosse ocupado, à vez, por pessoas que tentavam resolver o problema, sem que ela conseguisse deixar de pensar na carga viral que poderia carregar cada um que se aproximava. Cada vez que alguém ia embora, desinfetava afincadamente a secretária, a cadeira, o teclado, o rato, o telefone e arejava a sala. Chegou ao trabalho às 8h50m e computador ficou operacional às 16h30m. Das sete horas que lá esteve gastou cerca de três a desinfetar-se e a desinfetar a sala, meia hora a falar com o chefe, cerca de dez minutos em reunião online e as restantes a ver o tempo passar.
Depois disso, e já que o dia estava estragado e ela estava na rua, a sentir-se suja e infetada, aproveitou para realizar a complicada tarefa de ir ao supermercado. Colocou-se na fila ordeira de pessoas a respeitar as distâncias de segurança, e o desamparo atingiu-a em cheio. Sentiu-se terrivelmente sozinha. As pessoas esquivavam-se umas das outras, com olhares envergonhados como quem pede desculpa por ter medo. Ela inspirava e a máscara colava-se à cara deixando-a ligeiramente tonta, sentindo que o ar não lhe chegava para respirar fundo. Fez as compras em sobressalto constante, preocupada com tudo o que tocava e passando desinfetante nas mãos diversas vezes. Já não se lembrava em que é que mexera, se devia desinfetar o volante do carro, se devia guardar o troco na carteira ou no bolso, se seria melhor conservar a máscara posta até chegar a casa. O único pensamento claro que tinha é que queria fechar-se rapidamente na segurança do seu lar.
Quando finalmente chegou, despiu-se na varanda (parece-me que já nenhum vizinho se admira com gente em roupa interior nas varandas), pôs a carteira e os sacos das compras a apanhar sol e desinfetou, antes de arrumar nos armários, todas as embalagens. De seguida, física e psicologicamente exausta, deixou-se afundar no sofá. Pela primeira vez desde o início do confinamento, nesse dia não treinou.
Episódio 1
Episódio 2
Episódio 3
Episódio 4
A Casa, a Família e o Gato
UM CONTO DE QUARENTENA
Cláudia Quaresma
Fotos de Tiago Lourenço e de Cláudia Quaresma
@the.tiagolourencoph
留言