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A Casa, a Família e o Gato

A Casa, a Família e o Gato

UM CONTO DE QUARENTENA

Episódio 1


7 horas e 3 minutos

Começo a acordar. É uma terça-feira do mês de abril e o céu está pontuado de nuvens que filtram os tímidos raios solares. O ar cheira a lençóis lavados. Da terra húmida desprende-se um odor acre a turfa refrescada pela chuva da primavera, que convida pardais e melros a bicar por alimento. Sinto o sol a roçar a parede nascente como uma espécie de formigueiro que me desperta da dormência da noite. Espreguiço as paredes amarelas enquanto sobem as persianas e acolho a alvorada.

No peitoril da janela o gato preto estende as patas, ensonado, arqueia o corpo magro e espreguiça-se, regalando-se com o sol da alvorada sobre o pelo luzidio.

- Bom dia Gato! – cumprimento afável, enquanto ele boceja mostrando os pequenos dentes afiados e a língua áspera.

Em tempos normais, apenas o Gato é a minha companhia de todas as horas. Mas estes não são tempos normais. O mundo está virado ao contrário e as pessoas que povoavam as ruas, que as enchiam de movimento, de azáfama, de ruído, estão agora recolhidas nas suas casas. As casas a princípio estranharam, não estávamos habituadas a ser habitadas com tanta efetividade. Aos poucos vamo-nos acostumando a estas novas vivências.

Aqui, a família está permanentemente em casa e enche todas as divisões. A despensa está sempre vazia, a cozinha é utilizada de forma quase contínua e o pavimento, apesar de toda a limpeza, acumula pó, migalhas e cabelos. Já me dói o mármore do chão e o verniz dos tacos, de tanto serem esfregados com lixívia. Por vezes penso que vão passar muitos anos até que eu perca este cheiro penetrante a amoníaco.

Os ritmos no meu interior também se alteraram. Outrora, a família passava de uma divisão para outra quase sempre em jeito apressado, sobretudo de manhã, ou ao fim do dia quando regressavam das suas inúmeras atividades. Às vezes, passavam-se semanas sem que reparassem num pequeno detalhe, algo fora do sítio, uma mancha na porta de um armário, um rodapé com pó. Agora, parece que estão a redescobrir todos os meus cantos e passam dias a arrumar armários, organizar prateleiras, selecionar objetos que não interessam. Escrutinam, escarafuncham, limpam, fazem mudanças. Na cabeça da Mãe surgem planos para obras, para retirar as banheiras das casas de banho, deitar abaixo a parede da cozinha, tudo depois de terminada a pandemia, claro, pois nesta altura o interior das casas está interdito a estranhos. Ela olha-me de todos os ângulos e as ideias vão surgindo.

A Mãe gosta de obras e de mudanças. O Pai não, apesar de no final apreciar o resultado. Eu alinho com o Pai - tenho sempre algum receio quando a Mãe começa a planear derrubar-me paredes. O Gato também não gosta de obras. Não aprecia ter intrusos por aqui e não gosta que alterem as perceções que tem dos espaços. Cada vez que ocorre uma mudança dedica-se durante semanas à exploração de todos os recantos, à semelhança de um felino selvagem em plena savana. Agacha-se atrás de móveis, faz emboscadas a pequenos objetos caídos ou às pernas de quem passa e, de noite, com os olhos a brilhar como faróis, patrulha silenciosamente todos os compartimentos.

Já lhe tentei explicar que continuo a ser a mesma casa e que, apesar de algumas mudanças, os horizontes do mundo dele se mantêm, mas ele tem de confirmar por si próprio.

Não obstante tanto olhar atento, ali no hall, por baixo da cadeira ficou esquecida uma caixa de cartão, não muito grande. É uma encomenda que chegou ontem, foi devidamente desinfetada, e pousada em isolamento, à espera de passar o tempo suficiente para poder 3 ser manuseada em segurança. Ninguém sabe muito bem quanto tempo o vírus sobrevive em superfícies, se é que sobrevive, portanto, o melhor é ter cautelas.


7 horas e 27 minutos

Ouvem-se os primeiros ruídos na cozinha. Foi a Mãe que se levantou. O Gato, com uma energia que não anunciava, ergue-se de um salto e dirige-se para a cozinha onde se roça nas pernas da Mãe miando em tom de desespero. Quando acorda quer comer e não gosta que o façam esperar.

Ele e a Mãe costumavam tomar o pequeno almoço juntos assim que ela descia do quarto. Assim que a pressentia acordar, punha-se à espera, impaciente, atrás da porta. Agora, em tempos de confinamento, há novos hábitos. A Mãe sai de casa cedo para correr, antes de haver muita gente na rua, a obrigá-la a deslocar-se em ziguezague, procurando evitar as nuvens de gotículas potencialmente contaminadas que cada pessoa traz em redor. Posto isso, gasta apenas o tempo necessário para descascar um quivi que leva à boca em quartos e beber meia chávena de café da véspera.

A Mãe tem dois vícios, o café e o exercício físico. Por estes dias, com a cafeteira sempre à mão, tem dificuldade em moderar o primeiro. Em relação ao segundo, e apesar do ginásio encerrado, tenta reduzi-lo o menos possível. Antes de ser obrigada a ficar em casa, ia ao ginásio todos os dias, por vezes de manhã e à noite. Sente muita falta dessa rotina, como de tantas outras coisas e entristece-a pensar que poderá passar muito, muito, tempo até que volte a retomá-las como eram antes. Receia que a vida venha a ficar marcada por uma linha que divide o antes e o depois do Covid-19. Às vezes, quando se sente mais abatida, apetece-lhe deixar de se esforçar. Ficar estendida no sofá entre quadrados de chocolate, amêndoas e copos de vinho tinto, a assistir a uma telenovela ou a uma comédia romântica de fraca qualidade. Pensa que podia acordar para trabalhar apenas alguns minutos antes da reunião de controle e aparecer à frente da câmara com uma sweatshirt velha vestida por cima do pijama. Talvez pudesse empenhar-se menos no trabalho, deixar amontoar os pedidos que aguardam resposta. Podia esquecer-se da depilação, não pintar as unhas e deixar pilhas de roupa amontoarem-se sem as passar a ferro. Meter no microondas refeições congeladas e talvez passar uma semana inteira sem fazer sopa. Mas depressa se obriga a afastar esses pensamentos. Este isolamento já está a levar tanta coisa, não vai deixar que leve também o esforço e dedicação que investiu nas várias vertentes da sua vida antes da pandemia.


Prende a bolsa do telemóvel à cintura e calça as sapatilhas para sair. A descer as escadas sintoniza uma lista de música alegre e põe a funcionar a aplicação que mede a distância corrida. Ao chegar à rua sente-se animada pelo ar fresco da manhã e reflete que, apesar de tudo, tem bastante sorte. Vive numa cidade onde é agradável passear ao ar livre, banhada pelo mar, com espaço nas ruas e entre casas. Ouve a contagem decrescente da aplicação e dá início à corrida, numa cadência regular, ao ritmo da música.

Aborrecido, na cozinha, o Gato mordisca a ração que ela lhe deitou na tijela e com a qual terá de se contentar até ao seu regresso.




A Casa, a Família e o Gato

UM CONTO DE QUARENTENA

Cláudia Quaresma


Fotos de Tiago Lourenço

@the.tiagolourencoph


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