Conto “PARA QUE SERVEM AS MÃOS?”
“As mãos servem para pedir, prometer, chamar, conceder, ameaçar, suplicar, exigir, acariciar, recusar, interrogar, admirar, confessar, calcular, comandar, injuriar, incitar, teimar, encorajar, acusar, condenar, absolver, perdoar, desprezar, desafiar, aplaudir, reger, benzer, humilhar, reconciliar, exaltar, construir, trabalhar, escrever”...
Gioseppe Ghiaroni, Monólogo das mãos
Há um monólogo antigo – Para que servem as mãos? – que lhe chamou a atenção para as suas, ali ao redor do teclado. Toda a sua vida havia sido vivida ao redor do fato de que precisava se expressar e amava fazê-lo por escrito. Se entendia bem com as palavras. Na verdade, poderia mesmo dizer que as amava. Elas sabiam como retratar cada segundo seu, sabiam contar suas dores e amores e paixões e decepções... sabiam tudo, dela.
Não entendia quando as pessoas apenas diziam que as palavras estavam ali revelando algo, como se fosse feio – pois se para isso foram inventadas, como não revelariam? O que pensavam os outros era e sempre tinha sido apenas problema dos outros. Pois se independentemente do dito, cada pessoa interpreta o fato como quer, como pode? Que jogo estranho, o da palavra...
Movimentou os dedos – meu Deus, havia feito tantos raciocínios diferentes em um único dia... todos por escrito. A pandemia havia criado modalidades novas de escrita, ela achava.
Quando bem jovem, depois de discutir com a mãe, lhe escrevia longas mensagens. Nada tinha mudado. Havia uma personalidade e um sentimento tão bem traduzível na escrita que era mesmo irresistível não criar relações, imagens e emoções com ela. Mas ainda assim, continuava a depender “do querer” de quem a lia, o que criava muitas vezes enorme tristeza.
Acompanhando as letras que dançavam ao seu redor, se perguntava coisas que haviam crescido e amadurecido com sua vida: ainda tinha o amor correspondido, haveria um mundo solidário em algum lugar, como se daria a evolução após a morte, como ajudar ou como pedir ajuda?
Sim. Cada pessoa tinha uma porta de diálogo. Porém, seu desígnio parecia estar ligado a buscar meios de abri-las para todos, enquanto as suas esbarravam em sua sinceridade em responde-las...
Bem, pelo menos tinha muitas perguntas. Eternas perguntas. Muitas sem respostas. Ainda. Talvez um dia as tivesse – se não em vida, em espírito.
Para que servem as mãos? Para escrever, sobretudo. Para colocar em perspectiva muito do que havia no mundo e nas pessoas. Para, diante de um teclado, dar vida a tudo o que via e também se angustiar, pedir, denunciar. Escrever eram todas as histórias possíveis e passíveis de se viver em uma tarde, em uma vida, em uma lágrima.
Ainda assim, diante de sua tristeza imensa pela distância entre ela e o seu desejo, ela e uma amizade que fazia parte, mas que não era, nem nunca tinha sido o acontecimento principal, suspirou. Esticou os dedos no teclado. Já tinha usado todas as palavras e esperava pelo menos um movimento. Nada ainda.
Que droga.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto "Assim sempre"
Ir para a escola, aprender coisas novas, se desafiar. Os adultos falam que é o início da vida, da verdadeira vida. Parece bom e sabe bem. Voltar para casa com a cabeça cheia de novidades, de experiências, de desafios. Fazer bem rápido os deveres que a professora determina. Prestar atenção ao que a professora fala é suficiente para os momentos de avaliação e para entender tudo. Gosta disso. Quando os irmãos estudam na mesa da sala de jantar, ela inventa que tem de estudar, para estar ali a curtir aquele ambiente. Fica deliciada com o cheiro do lápis, da borracha, dos cadernos, dos livros. O som do lápis marcando as palavras no papel, do folhear das páginas dos cadernos e dos livros. Cada irmão falando de coisas que nunca ouviu falar. Coisas novas. Fica entusiasmada com a ideia de um dia ter o direito e a honra de também estudar essas coisas desconhecidas e desafiadoras. Como ama tudo isso...
A natureza e as coisas corriqueiras da vida prendem seu tempo e seu pensamento. Apanhar fruta: tangerinas, tângeras, clementinas, laranjas, limões, dióspiros/caquis, figos, pêssegos, damascos, ameixas, maçãs, nozes. Ela e os irmãos aprenderam quais são as árvores que não se apanha fruta porque são para os meses de menos abundância ou guardadas para a família que vive fora do país. Essas árvores até têm o nome dessas pessoas para nenhum esquecer ou se distrair. Sempre que olha essa fruta lembra dessas pessoas e do amor que todos sentem por elas.
Ir buscar água à fonte, varrer o quintal. Colocar a lenha a secar em construções desafiantes que parecem prédios. Dar de comer aos porcos, as cascas dos legumes e da fruta. Aos cães, os restos de sopa, de arroz, de carne das refeições. Aos coelhos, a erva que foi cortada do quintal e uma comida comprada que lhe lembra sempre espaguete/esparguete partido.
Às vezes é necessário ajudar a descarregar sacos de cimento e tijolos, de camiões/caminhões. Tudo isto e muito mais, não gosta muito, quando a chamam. Mas depois, vai começando, continuando e termina amando. Tudo faz seu corpo e sua alma se sentirem vivos, úteis, presentes na vida, no agora. Essa é a vida e está bom assim. O seu ritmo circadiano rolando morninho, quentinho, gostosinho.
Ao deitar, lê um pouco do livro que está a terminar. Recorda o dia, recorda as coisas boas, tenta entender o que não foi tão bom. Pensa no dia que vem e adormece profundamente.
Tudo tão fácil, tão simples, tão gostoso.
Será que a vida vai ser assim sempre?
Ana Santos, professora, jornalista
Conto “Da escrita”
Da escrita
Há meia dúzia de meses atrás, afirmava eu que a escrita não era ”…uma preferência, necessidade ou satisfação permanente.”
Como o tempo e a mente nos acaba por surpreender!
Actualmente, não sendo uma obsessão, é, no entanto, um facto natural e instintivo.
O corpo pede algo a que não conseguimos responder e a escrita juntamente com a música, têm sido retemperadoras. A vitamina que apazigua as fragilidades de um corpo exausto.
Curioso como sempre encontramos algo que nos console, mesmo que por breves e modestos momentos. Sempre assim foi, na infância, adolescência ou já adultos feitos e “responsáveis”.
Com o apelo de cada momento, em cada fase encontrávamos o escape necessário. Umas vezes mais eficaz e reparador, outras, com o efeito dum placebo ou mezinha caseira.
Numa escapadela fugidia, num minuto de “paragem de motores”, numa esquiva consentida, sempre uma solução era tentada. Quando só a nós tínhamos de prestar contas, o “cardápio” era mais diversificado, mas sempre ponderando possíveis efeitos secundários, ou reacções alérgicas.
Enquanto miúdos era assim mesmo, que o poder paternal era habitualmente praticado de forma vigorosa. Quando nas escolhas o bom senso não imperava, o remédio era quase sempre convincente. E não valia a pena alertarmos para efeitos nefastos de uma possível sobredosagem, logo nos era dito que problemas não haveria.
Era remédio caseiro e de boas práticas terapêuticas!
Hoje, na verdade, recordo esses tempos com alguma saudade. Os tempos em que um emplastro de papel de mercearia bem demolhado em vinagre de vinho (caseiro!) fazia verdadeiros milagres em qualquer esfoladela ou hematoma do dia a dia. Do Pomito de Lencart – “Contra empigens, dartros, herpes e outras moléstias de pele, prurido ou comichão, focagem, queimaduras, feridas e úlceras em geral”, pomada santa e milagrosa da Farmácia Central do Porto que tudo curava. Tempos em que um lençol velho rasgado a preceito dava lugar a uma rápida, mas eficaz ligadura de pano, feita à medida da luxação ou entorse. O Vicks Vaporub pomada criada para desobstruir o nariz congestionado e alívio da tosse associado a gripes, constipações e resfriados, que quando aplicada sobre o peito se entranhava pelas narinas elevando-nos a outra dimensão. Época de poucas escolhas, mas de muitas soluções.
E comecei pela escrita, ou falta dela…
Nos tempos mais recentes, tem sido ela o bálsamo para todas as maleitas.
Produto caseiro, de fácil preparação e aplicação, ecologicamente sustentável e ao alcance de qualquer bolsa. Não sem contra-indicações, que nela são utilizados muitos sinais e símbolos nem sempre assimiladas e apropriados a todos os espíritos.
“As palavras organizadas de maneira diversa produzem um sentido diverso, e os sentidos organizados de maneira diversa produzem efeitos diferentes.”
― Blaise Pascal
João Paulo Pimentel, convidado
@jpaulopimentel62
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