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3 Contos "Olímpicos"



Foto de João Paulo Pimentel

Conto “REPETIÇÕES VITAIS”

A vida lhe jogava de um lado para o outro como faz com todos. O de sempre. Mas naquele dia em especial, mesmo convivendo com a COVID há um ano e meio, o tempo parecia ter um acerto diferente com ela – ali, em frente à TV, o que lhe importava era ver a Abertura dos Jogos Olímpicos. Mudavam as cidades e as tradições contidas nas aberturas, mas aquele momento era sempre único, básico e transpirava a nobreza da qual os gregos sempre falavam.


Agora a Grécia e seus princípios eram traduzidos para o Japão e tudo ficou simples como um origami. É preciso ter honra, é preciso ter respeito, é preciso ter aceitação. Seu coração se derretia, olhando a tela – todos ainda presos por tantas coisas... mas o motivo de esperar pacientemente estava li, naquela esperança de uma humanidade que ninguém nunca tinha visto, mas que todos, de alguma forma, sabiam ser possível. Mil vezes seus olhos se encheram d’água – finalmente o respeito pela morte, pelo sacrifício humano, pela dor, pela perda. Um momento que a vida normal nunca lhe deixava usufruir estava ali, diante dela, de novo - e a cada quatro anos se repetia.


Dentro de seu coração a pergunta que a perseguia desde criança: nunca quem era bom, seria, exerceria sua bondade, junto com todos? Como um muro contra os maus – por quê os bons nunca se juntavam e agiam? ... ...


Sem resposta. Por quê as pessoas insistiam em reclamar, ao invés de fazerem alguma coisa? Por quê, quanto mais tinham na vida, mais pareciam querer? Sempre a perseguiram, as perguntas.


Trabalhou um pouquinho, mas com o coração sendo puxado pela televisão porque ali, ela assistia aos princípios que aprendera com seus pais, em criança. Ser útil, ter orgulho de quem era, se esforçar.


Assim, passo a passo, a cada quatro anos, revia quem era, como se estivesse de frente para o espelho. Ainda discordava e amava. Discordava, mesmo quando amava. Ainda mergulhava nas coisas com o mesmo prazer de antes. Ainda vivia como se fosse o último dia, mesmo que fosse pra sentir preguiça porque ainda amava se entregar ao que sentia. As pessoas seriam assim? Ela quase poderia afirmar que o mais cômodo seria se deixar levar pelas correntezas, influências e indicações políticas.


Reverenciava os espíritos e via neles um exemplo, muitas vezes. Não se importava em ser lembrada, mas se importava em lembrar. E honrar. Olimpíadas...


Quem ainda via o que estava ali, de profundeza humana? Qual político, por exemplo? Político seria exemplo?


A honra esteve na tela da Tv por toda a manhã. Aquela profunda, que acolhe as diferenças e à qual pertence o espírito olímpico, que tem uma ética de vida e que não precisa propriamente das leis porque tem princípios.


Olimpíada... Talvez por isso, o mundo tenha se distanciado do princípio para acolher apenas a imagem e consumi-la, assim como chinelos ou clubes de investimento...


Meras repetições ou a revivificação de conceitos éticos?

Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV



Conto “Tem algo errado”

Ana tenta dormir mas aquilo não lhe sai da cabeça.


Fazia sempre tudo que os outros e as outras faziam e estava tudo certo. Recebia quase sempre elogios, como todos e todas. A vida era uma estrada que descia ligeiramente, tranquilamente. Umas vezes sentia-se uma brisa quente, outras vezes um frio desgraçado, mas Ana vivia sorridente porque os dias eram cheios de experiências novas. Mesmo quando algo não corria bem, todos e todas se juntavam, se uniam, se ajudavam e descobriam uma forma de solucionar o que fosse preciso. Era espetacular estar ali, fazer parte daquilo. Se alguém aprendia a nadar, todos e todas ficavam felizes. Todos e todas de alguma forma tinham conseguido aprender a nadar. O mesmo para tudo o resto. Quando alguém conseguia ir para a faculdade. Quando alguém jogava bem futebol, voleibol, tênis, canasta. Quando alguém adivinhava os problemas difíceis que eram colocados a todos e todas, nos encontros. Quando alguém aprendia a fazer um bolo gostoso. Quando alguém conseguia viajar a um lugar que ninguém conhecia. Quando alguém conseguia ter direito a férias e vinha feliz. Quando alguém conseguia ter um pouco mais de dinheiro e a falta “dele” nos outros e outras até parecia que diminuía. Quando alguém conseguia terminar um curso, um mestrado ou doutorado/doutoramento. Quando alguém conseguia ter um bom emprego. Ter um carro novo. Quando alguém era escolhido para ir ou subir nos lugares mais perigosos. Quando todos e todas eram chamados para ajudar a arrastar mobília. Para separar cachorros que brigavam. Quando era necessário dormir no chão para outros e outras terem cama. Todos e todas ficavam felizes como se tivessem sido eles. Ou elas. Não existiam diferenças. Existia a necessidade e existiam pessoas que se ofereciam para ajudar, para fazer parte da solução. Sem comparações. Sem competições. De coração entregue.


Como tudo isto muda? Como tudo isto muda porque a idade avança? Como tudo muda porque o seu corpo fica feminino? Não basta uma vez por mês andar mais limitada e quieta por causa da menstruação que ainda a faz sentir estranha, esquisita e sem entender porque isso lhe acontece? Porque tudo muda e fica pior e para os que não têm menstruação, fica melhor? Que espécie de injustiça é essa? É como se o árbitro marcasse dois penalties inexistentes... Ninguém vê? Ninguém percebe que nada disso faz sentido? Que está tudo errado?


Ana tenta dormir mas aquilo não lhe sai da cabeça.

Ana Santos, professora, jornalista



Conto “Dum tempo”

Tive a sorte de saborear uma época em que a vida era usufruída com outra serenidade. A serenidade de um tempo em que cada momento era prolongado e esgotado até ao último segundo.


Sentia-se o tempo de uma outra forma, sem a pressão e correria dum dia a dia vivido até à exaustão do corpo.


E tudo era desfrutado em partilha e convivência com os amigos e vizinhos mais próximos. Na rua, local de eleição para todas as brincadeiras, determinadas com todo o rigor, sazonalmente, em função de cada estação do ano.


O período de férias escolares era sem dúvida, o mais preenchido e diversificado e com maior número de intervenientes.


Era a época das pistas de terra batida, construídas num baldio próximo, e onde com toda a pompa e circunstância eram realizados os primeiros campeonatos de todo o terreno em bicicleta. Com direito a entrega de medalhas e taças aos vencedores, pois claro, que o evento era levado com a seriedade que se impunha!


Ocasião também para os concorridos e desejados torneios de futebol de rua, (sim, a rua era o nosso estádio!), com as marcações das balizas realizadas com simples torrões de relva, que regularmente provocavam a ira do cantoneiro de serviço na zona. Os restantes acessórios, bola, “chuteiras” e demais vestuário, era muitas vezes solucionado de improviso, na hora e de acordo com as limitações de cada momento e de cada um.


Também a construção meticulosa das “estrelas” (papagaios) realizadas com canas de bambu, papel de seda e cola de farinha de trigo, em modelos muitas vezes personalizados na forma e colorido. Lançadas em terreno relvado e sobranceiro, garantia todas as condições propícias para a prática de tal modalidade. E era o “dar fio” e a distância assim percorrida que tudo decidia, num passatempo de horas partilhadas com toda a concentração e onde as características/formato da cauda era o complemento fundamental e decisivo para o sucesso.


A influência das primeiras bandas desenhadas e westerns televisivos trouxeram a paixão pela realidade distante do Velho Oeste. Tudo efectuado, mais uma vez, com uma planificação e organização rigorosa de todo o cenário do “campo de batalha”, dos trajes e acessórios a usar por cada vilão.


Tarefa prolongada por semanas, realizada habilmente por todos num pinhal próximo e onde os territórios de cada facção eram delimitados com a referência dos clássicos. Armamentos e barricadas, tudo era planeado e executado com a robustez e estratégia necessária.


E assim vivíamos a nossa “ficção” e a fantasia que nos alimentava a criatividade e dava vida a todos os estímulos. Na rua, em contacto permanente com o ambiente externo, com a natureza, sem pressas ou pressão do tempo.


Só a chamada, às vezes repetida a plenos pulmões pela “entidade superior”, nos sobressaltava e alertava que era hora para o fim da contenda e da diversão. Muitas vezes, nos dias intermináveis de Verão e já depois da “janta”, o briefing final desenrolava-se enquanto o Sol se punha no horizonte.


Como era saudável essa partilha, mesmo com provocações e “nicanços” à mistura, era o momento de todas as considerações.


E, com a grande cidade toda iluminada como pano de fundo, cada um de nós lá ia congeminando que grandes aventuras, teria ela para nos oferecer no futuro.


Sem pressas e com a tranquilidade que o momento impunha…”


“O valor das coisas não está no tempo que elas duram, mas na intensidade com que acontecem. Por isso existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis.”

- Maria Júlia Paes da Silva



João Paulo Pimentel, Convidado





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