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3 Contos Nossos


Foto de João Paulo Pimentel

Conto “PELA LENTE DA TV”

Olimpíada... Lá estavam elas, de novo... A Olimpíada e a TV, juntas, lhe fazendo companhia. “Que pena, está no fim” – pensou ela, com o controle remoto mais atlético do mundo – pulava de um canal para o outro, sem saber o que ver. “No remo estamos bem, na ginástica, no atletismo... Ai que delícia o skate e ser o Ítalo, o campeão de surf porque eles são todos genuinamente brasileiros”, pensava frenética. Ahn... mas ser brasileiro era...


“Conseguir, apesar de tudo e de todos! – ela vibrava com a vizinha, ao telefone. “Nós somos a encarnação do desaforo, do desafogo! Darlan viralizou, menina! Você viu a falta de vergonha na cara do Governo? ... Ahn? Que apoia nada! Esses caras vão pegar carona na vitória dos atletas, sem terem feito rigorosamente nada pra apoiar esporte! Se fosse jogador de futebol tarado, aí era outra coisa!”.


Falava ao telefone e manejava o controle remoto com a rapidez dos recordistas. E por suas mãos passaram pela tela todas as notícias, descontroladamente. “A Confederação de vôlei do Brasil precisa se rever porque a politicagem dos cartolas está arruinando os times. Levamos 6 times, minha filha, 6! Sabem quantos times emplacamos? Unzinho só. E Deus me livre, mas com um caso mal contado de corte da seleção!”.

Naquele dia estava em cólicas porque muita coisa tinha acontecido naquela semana. Quantas notícias!


Trim!


Ela voou para o telefone:


“Alô! O quê? Não... Menina, quem vota nesse homem? Ai, mas eu tenho as minhas dificuldades com político, você sabe! Ainda mais que agora você nasce brasileiro e já tem que escolher se vai pra direita ou esquerda! Que maluquice! Pra mim, me bastava um cara que não roubasse e soubesse o que fazer, além de fofoca e maledicência!”.


Trim!

Trim!


E lá ia ela zapeando a TV e comentando tudo. “Deixa eu te ensinar, minha filha. Brasileiro é assim. Todo mundo pensa que engana. Mas a gente, a mulher, a nordestina, não perde tempo andando na garupa de ninguém – ela olha, aprende e na próxima eleição tem acerto de contas!”.


A rainha das panelas, das limpezas, era também a rainha da TV, a super comentarista, aquela implacável, que não se deixa enganar nunca.


“Menino, se você não parar de mexer onde não deve, eu vou aí!


“Venha ver a chinezinha que ganhou no salto ornamental, venha!”.


“Doida pela minha segunda dose! Não abro mão! Só gente doida escolhe marca de vacina, gente! Vacina é pra tomar, não inventa, comadre!”.


E lá ia ela... A casa ia ficando um brinco, de tão limpa, os meninos almoçaram, graças a Deus e ela, diante da TV via, usufruía, vivia a democracia.


Isso sim, vale a nossa vida!

Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV



Conto "Organizado"

Ana gosta de resolver problemas, arrumar coisas, tratar de assuntos. Tudo arrumado, organizado, decidido e finalizado parece mais bonitinho. Sente-se realizada nessas horas. A vida parece perfeita e linda assim. Tudo tem uma solução. Muda uma gaveta, lava o que está sujo, enche o que está vazio.


Nos dias em que passa a roupa e a arruma, não tem vontade de utilizar nenhuma. Estão tão limpinhas, passadinhas e bonitinhas no seu lugar. Tudo certo. Tudo resolvido. Sujar de novo a roupa não lhe dá muita vontade.


Quando limpa a casa, gosta de ficar olhando para tudo impecável, brilhando, cheiroso e também gostaria de manter tudo assim.


E quando faz um bolo? Como é gostoso abrir o forno e tirar o bolo e ver que ele está lindo, bonitinho e com ar de apetitoso. Intocável. Perfeito. Nem apetece abrir.


No trabalho, quando é necessário reorganizar, seja de que forma for, Ana é chamada para resolver. É uma máquina com soluções para qualquer diretor. Onde está tudo confuso, é ela que resolve tudo. Tem um bom salário, o seu lugar profissional é seguro e eterno e a vida segue bem seu rumo.


Uma vida inteira disciplinada, uma casa arrumada, um trabalho organizado, Ana sempre cumpridora.


Colaboradora na resolução de “desarrumações” da vida ao seu redor.


Satisfeita com seus passos no passado, feliz com a forma segura como viveu, Ana se depara com um mundo confuso.


Antes da pandemia já percebia muita injustiça e muito problema. Sempre conseguiu se desviar e se resolver. Com a pandemia o mundo se complicou mas ela se aguentou na sua organização e consistência. A forma como decidiu viver poupou-a de se desgraçar como muitos outros, nesta hora pandêmica. Esse fato, lhe dói, e essa dor, não a larga.


Toda a vida desejou outra vida. Toda a vida desejou ser menos organizada. Toda a vida desejou ser uma das atletas que vê na TV, nos Jogos Olímpicos. Toda a vida achou que suas escolhas eram estranhas, bizarras e doentias. Toda a vida olhou os outros como melhores. Toda a vida se considerou uma pessoa errada. E agora, demasiados morrem, demasiados ficam sem emprego, demasiados fecham seus negócios, demasiados desesperam. Todos os que estavam melhores que ela. Fica confusa sofre e não sabe como ajudar...

Ana Santos, professora, jornalista



Conto “Uma questão de equilíbrio…”

As palavras escasseiam quando o silêncio se impõe e o olhar se torna mais límpido. Os aromas da natureza percorrem os nossos sentidos e tudo que nos rodeia é imensamente despojado de luxo ou complexidade. No entanto, a sua magnificência é plena e até nas suas manifestações mais elementares sentimos o seu poder e efeito.

E era assim na infância ….

Lembrávamos a sua força no poder de uma rajada de vento que nos virava do avesso o guarda chuva num dia de tempestade, como que a dizer “não fujas de mim”.

E como era bom sentir a chuva a percorrer-nos a face, sentir a sua frescura num corpo gélido, num vigor de entusiasmo e satisfação. Saltar sobre cada poça de água, sem falhar uma só, numa dança divina e sublime. Levantar os olhos e em cada gota cintilante sentirmos o júbilo de uma prece cumprida. Abrir avidamente os lábios, sentir a sua frescura escorrendo pela garganta, experimentar o seu gosto numa sensação de purificação que percorria todo o corpo e expurgava a alma.

Lembramos a sua força no sobressalto de um primeiro mergulho mal calculado, em águas profundas e revoltas, e em que os pés trémulos e sem apoio deixavam o corpo suspenso em hesitantes movimentos. Nos momentos de exaustão, pairávamos sobre o seu leito num suave balanço e contemplávamos o azul imenso do céu interrompido, de quando em vez, por brancas e pachorrentas nuvens.

E lá recordávamos que aquela tinha sido a nossa origem, num universo cheio de vida e dominado pela vastidão das águas.

E era assim na infância… e ainda hoje.

A relação com a natureza e principalmente com o elemento água foi permanente ao longo da vida, não por uma busca desmedida de autoconhecimento ou “um mergulho dentro de si mesmo”, mas por uma necessidade inata.

A minha relação com a água foi sempre muito intensa e parte da minha essência. Não tenho a certeza se a mais vital na minha existência, ou mesmo, se a sua força e energia rege forçosamente a minha vida… simplesmente inquieta-me a sua ausência.

Lembro um tempo, em que após cinco dias de viagem pelo Alentejo profundo, o corpo cedeu ao calor tórrido e a condição da sua privação impôs um rápido regresso ao litoral.

E a imagem da amplitude daquele lençol de água a perder-se no horizonte, foi tratamento eficaz para todo aquele desconforto. Não me lembro sequer se houve direito a mergulhar nas águas calmas e refrescantes, ou se simplesmente seguimos viagem, a seu lado, em direcção ao sul.

Lembro um tempo, em que um fim de tarde ouvindo os sons das ondas embalando o “astro-rei” era um momento de reconciliação e desprendimento. O tempo em que na despedida de mais um dia galgávamos as rochas sob as águas rasas, recolhendo algo para um jantar no aconchego de uma fogueira. Um “manjar dos deuses” num equilíbrio sublime.

E assim erámos também embalados para um sono profundo, sob o céu (agora estrelado) e, em fundo, o bramido cadenciado do mar ali tão perto, assinalando a sua constante presença.

Esta é a grande virtude e também atributo da natureza…

Um mundo exterior ao homem que não dependendo dele é, no entanto, fundamental para a sua saúde física e mental.

Tudo uma questão de equilíbrio…



"...⁠A natureza é a memória atemporal do mundo.

Um mundo sem a preservação da memória da terra, da água, do sol, do vento, se esquecerá da alma dos humanos..."

Carlos Daniel Dojja (em Poemas para crianças Crescidas)


João Paulo Pimentel, convidado

Agosto 2021

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