Conto “SOZINHA NÃO É SOLITÁRIA”
Ela leu uma matéria sobre a filha do Amir Klink – gente, que luxo poder velejar! Mas, na verdade, velejar sozinha pelo mundo – não era nem ela com o pai, nem o pai com a filha – era se ver sem nenhuma máscara porque não adianta nada você se disfarçar quando só você está ali.
Se encaram fantasmas e anjos; a glória de um pôr do sol perfeito numa praia portuguesa e o trabalho extremo, extenuante. Era aprender a se ouvir. Não apenas falar para preencher espaços vazios, mas ouvir: o mar, o vento, seus sentimentos.
- Cruzes! – e fez o sinal da cruz. Mas aquilo lhe ficou rondando a cabeça. Afinal, quando a gente – principalmente as mulheres – dizem “eu quero” – precisam estar preparadas para ouvir a opinião que virá e talvez discordar dela.
- Aí, pode esperar a DR e discutir relação, opinião e decisão, às vezes é muito chato – pensava ela.
Mas quando tinha que ser, tinha que ser. Tantas vezes aconteceu dela mesma se sentir sozinha, em mar aberto, encarando que ia insistir no que queria, mesmo com opiniões contrárias, pequenas ameaças, pragas, maus olhados, castigos, tudo.
- Uma mulher vive o estar sozinha. Vendo daí, a filha do Amir Klink pode nunca se sentir só, mas se sentir em paz, talvez. As pessoas estão tão agressivas... Só, absolutamente só, a menina pode se ouvir melhor porque as vezes a culpa, a solidão, a insegurança fazem muito barulho e no barco é você o problema pra resolver – ali, os dois, um de frente pro outro, cara a cara.
Limpar a casa nem lhe pareceu mais uma coisa má. A menina Klink tinha que limpar o barco, arrumar as coisas num espaço bem menor, organizar mantimentos, água, salva-vidas. Tudo o que estava no barco – e também tudo o que não estava - era decisão única e exclusivamente dela.
- Nossa, eu estaria preparada pra viver isso? Será que eu ia querer? Bem, o fato é que existe uma sabedoria, uma filosofia em estar só, sem se sentir solitária e essa filosofia precisa renascer todos os dias – estando ou não num barco, em mar aberto.
No meio do gelo, o pai dela deve ter se sentido melhor com as baleias do que sofrendo bullying na escola ou vendo atentados terroristas e chamados para pseudo revoluções desnecessárias na TV, pensou. Desse ruído não podemos fugir, daqui. Esse ruído, não podemos calar, fingir que não existe, ignorar. Mas ali na imensidão do mar, no silêncio das vozes, das bocas maliciosas, havia o trabalho extenuante, a glória do pôr do sol, alguma baleia... e o abençoado silêncio dos homens...
Fechou a porta da cozinha com a chave pra ninguém entrar e começou a lavar o casco de seu navio particular.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “Não ouvir e insistir”
Ana aprendeu, desde menina, que não se deve insistir com as pessoas. Quando se pede alguma coisa e essa pessoa diz “não”, é por que é “não”. Mesmo que custe ouvir. Mesmo que a gente não concorde. Mesmo que seja dito sem perceber a importância do que se fala. Mesmo que a pessoa esteja muito errada.
Aprendeu que não se deve insistir com as pessoas se elas não querem alguma coisa.
Aprendeu que, se tenta algo e não consegue, é por que não sabe. É por que isso não é para ela. É por que não é capaz. É por que deve fazer outras coisas.
Aprendeu que, se alguém lhe diz que amanhã faz, ou que depois lhe liga, ela aprendeu a aguardar. Afinal, essa pessoa falou que ia ligar amanhã, ou que depois ligava, levava, fazia, convidava, ajudava, emprestava, ...
Aprendeu que o que as pessoas mais velhas, familiares, professores, padres, médicos – pessoas consideradas de respeito – falavam, era a verdade do mundo. Eram as regras. Era assim. Devia ouvir, aprender, aceitar e seguir. Na dúvida, nunca desrespeitar o que essas pessoas diziam. Via que quem não ouvia nem dava importância era acusado de muitas coisas, de muitas falhas. Era considerado menor, marginal, antissocial, revolucionário, diferente, estranho. Não fazia parte dos promovidos, escolhidos, aplaudidos.
Ana viveu muitos anos sofrendo, tentando aceitar e cumprir todas estas regras. Tinha sempre algo que não parecia certo. Mas era assim. A vida era assim. Não podia desrespeitar pessoas tão ilustres. Não podia ir contra o que era considerado correto. Insistia, obedecia. Insistia, sofria. Insistia, adoecia. Chegou a um ponto da sua vida que percebeu que não podia continuar a seguir assim. Se continuasse, morria por dentro. Estava adoecendo. Envelhecendo e adoecendo, entristecendo, empobrecendo de sorrisos, de alegrias, de vida.
Percebeu que precisava mudar. As regras são para obedecer até ao ponto em que prejudicam emocionalmente, fisicamente, fisiologicamente, espiritualmente. Não queria fazer mal a ninguém nem desrespeitar ninguém, mas algo precisava mudar. Antes que fosse tarde. E, aos poucos foi mudando de ouvir e não insistir, para não ouvir e insistir. Ana passou a ouvir-se antes de ouvir os outros. Ana passou a insistir, quando queria muito alguma coisa. Insistir o suficiente para conseguir, para aprender. Nunca a insistir para perturbar ou danificar.
A vida podia ter sido assim mais tempo. Começou tarde a fazer isso. Mas pelo menos começou, fez, conseguiu. E conseguiu muitas coisas boas, difíceis, construtivas, importantes. Tem vontade ainda de fazer muitas mais. Enquanto lhe for possível vai fazer. Enquanto se ouvir primeiro vai conseguir. Enquanto souber insistir vai conseguir.
Ana Santos, professora, jornalista
Conto “Do tempo”
Num outro tempo, seriamos nós sem entraves ou limitações.
Tudo correria sem as marcas e incómodos de tal adereço.
Imprescindível para uns (a maioria?) uma idiotice para outros, a máscara tudo mudou.
Passamos a ser actores de uma só realidade, personagens do mesmo drama, membros da mesma seita.
E como é diferente a percepção que temos do outro!
Por muito expressivo que seja o seu olhar, tudo é apreendido pela metade.
Percebemos então que as referências são limitadas, e o oculto dá-nos a sensação do desconhecido num anonimato não desejado, mas necessário.
Como as quadrilhas de bandidos nos filmes de todos os tempos, enganamos a nossa existência e a história passa a ter um argumento dramático, secreto e misterioso. Dificilmente se desvenda quem são os “bons malandros”, e a suspeita e desconfiança imperam. Não por medo ou receio de algo malévolo, que essa é a razão da sua existência.
Como em qualquer enredo há quem despreze o perigo ou nem sequer o reconheça. Que é tudo uma palhaçada, uma ficção inventada e imposta por autoridades e fortes poderes estabelecidos. Um negócio de milhões, guerra moderna do século XXI, dum "fanatismo", fundamentalismo e ideologia nunca antes conhecidos e legitimados como um sinal dos tempos.
Para outros, uma “guerra” sem fronteiras, híbrida, resultante do conhecimento e do desenvolvimento de novas e inovadoras tecnologias ao dispor de grandes multinacionais farmacêuticas.
A presença da máscara passou assim a ser uma entidade que a todos se impôs. A toda a malandragem, boa ou má, que o transgressor é de outra circunstância.
E há versões para todos os gostos, de vários formatos, materiais, cores ou padrões. Descartáveis ou laváveis, personalizadas ou de grife, a máscara conquistou o seu lugar como elemento de protecção, complemento de vestuário e mesmo acessório de moda.
Qual “Homem Invisível” lutamos contra o “desconhecido”, e em cada mascarado tentamos ver mais um guerreiro de bravos combatentes.
Com o orgulho da criança que anónima e orgulhosamente encarna a pele do seu herói, vestimos a farda e partimos à luta que o inimigo se revelou poderoso.
No medo do desconhecido aceitamos ser seus parceiros incógnitos, e nessa condição assumimos a nossa presença com mais ou menos convicção ou aprumo.
E tudo seria uma realidade de um equilíbrio tão inusitado quanto extraordinário, se de um simples desfile carnavalesco se tratasse. No entanto, essa realidade partilha com todos nós a verdadeira catástrofe humana que acontece a cada dia, a cada hora.
Anónimos, desconhecidos, ricos ou pobres, bons ou maus malandros, com traje, máscara, maior ou menor folia ou fantasia, todos fazem parte deste entrudo.
E afinal… não vale a pena vermos a coisa pela metade, que este Carnaval não são três dias.
“O mundo é um lugar perigoso de se viver, não por causa daqueles que fazem o mal, mas sim por causa daqueles que observam e deixam o mal acontecer.”
- Albert Einstein
João Paulo Pimentel, convidado
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