Conto “QUEM NÃO ENTENDERIA?”
- Se você jogar pedra na minha irmã pequena eu vou aí e te pego, garoto!
- Eu pulei a janela da vizinha porque senti cheiro de doce de leite e fui lá só pra provar!
- Outro dia fui dar um espirro e fiquei com o pescoço entalado no vidro da janela!
Conversa de menino? Não, não. Conversa de menina. Assim os dias passavam. Ela ia lá e resolvia, tinha um pica-pau com o bico furado e um pedaço de arame pra fora, amava brincar de bicicleta e já tinha segurado com “toda a sua força de 7 anos” a lambreta do vizinho que “caiu em cima dela” – bem, ela também tinha mexido um pouquinho na lambreta, ok.
Da brincadeira com bonecas, lhe ficou mesmo a recordação do pica-pau. As bonecas “dorminhocas” eram deixadas “dormindo” em cima da cama – aquilo era quase como um castigo que ela não queria pra si. Brincava de jogos – inúmeros – de quebra cabeças, até jogo de dardos. E a vida era tão diferente que se brincava com gente. E gentes com perguntas inesgotáveis! As crianças se juntavam e pulavam amarelinha, brincavam de um sem número de tipos de pick, de “mamãe posso ir”, andavam de bicicleta. Mas havia uma liberdade de gênero que hoje não vejo nos games. Ah! E os adultos existiam concretamente. Não para darem ordens apenas, mas para conversarem sobre coisas diferentes. – Depois então que você conserta a torneira, precisa testar? Posso abrir? Mas como assim esperar secar, se eu vi você consertando? A tartaruga só come alface, é?
Os meninos eram todos avisados: - Minha irmã pequena é café com leite, mas tem que brincar! – e o mundo se resumia a dois dedões do pé eternamente sem cabeça, uma menina em ritmo de aventura e um mundo que podia ser descoberto – ainda.
A gente nem pensava que existia gênero. Ninguém sabia o que era essa palavra. Mas todos conheciam o “muque” da menina e “quem escrevia e não lia, o pau comia”, era fato! - Do jeito mais unissex do mundo.
O que foi feito daquele mundo? O que foi feito daquela menina? O que foi feito da nossa capacidade de diálogo? De compreensão de problemas, de fatos?
Mais do que ser plenamente tudo o que uma menina podia ser, a gente aprendia a ouvir e entender porque estávamos no mundo para crescer. O que você entende atualmente quando alguém lhe diz “Use máscara”? De algum modo o gênero e a suposta liberdade conquistada permitem que você entenda como quiser?
Ah se o meu pica-pau ainda existisse, moleque... Tu ia ver na tua cabeça como eu tinha furado o bico dele direitinho...
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto dos “Pés Sagrados”
Ana tem 4 anos e pouco. Observa atentamente o que está a acontecer para tentar entender o que se passa. Percebe que é um momento muito importante. Nunca a família está junta, de pé, em silêncio, olhando na mesma direção. Mas agora estavam. E era um silêncio mesmo grande. Nem se atrevia a fazer barulho a respirar, muito menos a perguntar a razão de tudo isto. Ficou quieta, olhando, analisando. Seria uma coisa muito boa? Uma coisa muito má? Muito importante era com toda a certeza.
Quando alguém falava, falava muito baixo e muito pouco. Falavam mais com os olhos e posições das caras. Era estranho e engraçado ao mesmo tempo. Devia ser alguma coisa com o Avô, porque estavam todos em frente à porta do seu quarto, o que nunca sucedia. Nossa!!! Algo com o Avô tem de ser algo mesmo importante...
Tudo com o Avô era muito sagrado, muito denso, muito surpreendente. Sempre que estava na sua presença ficava extasiada. Um homem enorme, poderoso, sereno, elegante. Ocupava tanto espaço quando chegava aos lugares, que parecia um Deus. Ana via todos olhando para ele de uma forma tão respeitosa, tão cuidada, tão adorável, e eram tantos que o procuravam, que estavam à sua volta, que devia ser alguém muito importante. Será que era mesmo um Deus?
De repente, algo ia acontecer porque Ana ouviu “...é agora...”.
A porta do quarto abriu. Ana nem percebeu como isso aconteceu. O silêncio grande voltou, e viu seu Avô de pé junto da cama. Sua irmã mais velha foi chamada e autorizada a entrar no quarto. Se ajoelhou em frente ao Avô, que tinha sentado um pouco antes na cama. Sua irmã tinha uma bacia, uma jarra com água e uma toalha na sua frente. Alguém comentou que era muito importante, o momento em que uma neta era autorizada a lavar os pés do Avô pela primeira vez. Pelo silêncio, devia ser mesmo. Ana ficou tão impressionada que quase sem respirar, com os olhos bem abertos, tentava entender tudo. Memorável. Que momento.
A partir desse dia ficou desejando e aguardando o dia que iria ter essa enorme honra. Nunca mais pés foram apenas pés.
Ana Santos, professora, jornalista
Conto d' “A menina mais-que-esperada”
Era a primeira menina numa família de rapazes. O pai só tinha irmãos e, todos eles, só tinham filhos meninos. Ela era, portanto, a menina mais-que-esperada. Num tempo em que ainda não havia ecografias, aguardava-se com expectativa o momento do nascimento para que o mistério do sexo se desvendasse. E assim foi.
“É uma menina”, disse o médico. E os olhos do pai rasaram-se de lágrimas.
“É uma menina”, disse o pai à avó. E do outro lado da linha ela calou-se, numa oração muda.
“É uma menina”, disse a avó a cada um dos tios. E eles correram a contar aos seus rapazes.
Era uma menina.
E para a menina compraram-se os vestidos mais bonitos, as fitas para o cabelo que ainda não tinha, fizeram-se casaquinhos e envoltas, em todos os tons de cor-de-rosa. À menina quiseram furar as orelhas à nascença, mas a mãe não deixou.
A menina fez um ano e o pai olhava, embevecido, para o passo incerto com que a sua “vassourinha” corria pela casa. As tias, deliciadas, compraram os vestidos namoravam nas montras e não serviam aos seus gaiatos. A avó fez um enxoval completo, um roupeiro de madeira, uma caminha para a boneca mais bonita que havia no bazar.
E a menina, ano e meio, vestido arregaçado, calcorreava os corredores no triciclo que a mãe, mais ajuizada, lhe comprara. A boneca permanecia bonita, penteada e abandonada, na sua caminha. As orelhas, mantinham-se por perfurar.
A menina crescia, rodeada pelos rapazes, querendo ser mais um no meio deles. Disputava com eles peças de lego, apostava que chegava ao ramo mais alto. Se a aborreciam, dava caneladas. Mas se por acaso algum era mais brusco com ela, logo o vinham avisando que tivesse cuidado com a menina. Se das tropelias resultava asneira grande, todos ficavam de castigo, menos ela, a menina. E os rapazes, amuados, olhavam-na com rancor. Era difícil para eles entender a distinção. Mais difícil era para ela.
Pela Páscoa, em casa dos avós, ela recebia lençóis e toalhas bordadas que iam encher a arca do sótão. “Para o teu enxoval. Todas as meninas devem ter um enxoval”. E a menina pensava que lá na nave, onde ela ia ser astronauta, não caberiam tantos lençóis. Sentava-se direita, na ponta do sofá, como uma senhorinha, a sorrir para a Tia Gracinda, enquanto ela estendia à Avó um embrulho de papel de seda. A Avó abria, admirava o ponto perfeito e dizia “Agradece à Tia Gracinda que é tão tua amiga” e ela, murmurava “obrigada, Tia Gracinda” e dava um beijo na bochecha empoada da velha tia, olhando de soslaio para os ovos de chocolate reservados aos primos.
Através das enormes portas de vidro da sala, via os primos, no jardim a correr, corados. Ouvia os gritos e as gargalhadas, com o sorriso a doer-lhe nos cantos da boca. Até que a mãe, condoída da desolação dela, a chamava à cozinha, para queimar o leite creme, deixando-a escapar-se pela porta das traseiras.
Os rapazes zombavam quando a viam aproximar-se “já marcaste o casamento?”, “Olha a noiva, olha a noiva” e ela agarrava-se aos cabelos do primeiro que apanhasse, com lágrimas de fúria.
Mas a culpa não era deles.
A culpa era dela, que não sabia ser menina.
Cláudia Quaresma, convidada
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