Conto do “Papo Estranho”
Alguma coisa ia acontecer. Minha professora nos chamou pra conversar, eu e minhas irmãs. Minha mãe tinha “passado a bola” daquela conversa e isso era diferente de tudo – pelas minhas contas, era a primeira vez. Sentamos. Que conversa estranha pra se ter com 10 anos. Pior do que aquela, só minha tia Dedé contando que meu pai tinha morrido, mas ISSO eu já sabia, eu tinha sentido, ouvido claramente, antes.
“Os homens e as mulheres são capazes de fabricar sementes de pessoas. Os homens depositam suas sementes nas mulheres e daí nascem os bebês”. Ah... (Ahn?)
“As mulheres produzem óvulos e são eles que guardam as sementes e lhe alimentam pra que virem crianças”. Ah... (Ahn!)
...” e depois de 9 meses o bebê sai todo formadinho da mulher, não de onde sai o xixi, mas é pertinho dali”. Ah... (Ahn?)
Bem em tempo: Toda essa conversa e ninguém me falou que menstruação dava cólica! Ninguém me ensinou a encaixar a abinha daquele tipo de absorvente sem cola numa cinta liga de plástico! Tantos espermatozoides e óvulos e bebes e gestações – um embaraço mental que na prática me rendeu estar na aula, sentir bastante mal estar, pedir pra ir ao banheiro, ver que sangrava, não saber como esconder aquele “negócio” até chegar em casa e ter que “colocar” o tal absorvente.
“Juízo, agora você é uma mulher, cuidado com os meninos, agora você já pode ter bebes”. Com 10 anos você entende isso ou foca na cólica?
Adultos são estranhos.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “Ser tremendamente”
Ana acha que pode dominar tudo. Acha-se capaz de tudo. O mundo é maravilhoso. Mas se ouve uma das irmãs a chorar, parece que o mundo vai terminar. Sente uma dor dentro de si, uma tristeza tão profunda que fica presa nessa dor.
Quando o sol brilha e aquece os dias, ela pula, corre, nada e a felicidade palpita à sua volta. Ela faz parte da natureza. O mundo é fácil, os problemas são solucionáveis e sua força é enorme. Mas se a sua família discute sobre religião ou política, sobre sair ou não à noite como os outros amigos, sobre o que é ser normal, ela fecha a porta do quarto e parece que fecha a porta do mundo. Parece que afinal nada existe. Se sente só e vazia.
Sabe o que quer, sabe o que pensa, sabe quem é. O mundo é um lugar saboroso de se estar. Mas se perde uma amiga, o mundo se torna um labirinto de monstros, onde não quer ficar nem um segundo.
Ela começa a não acreditar tanto em si nem no mundo por que tudo muda tão rápido, tão subitamente. Ela começa a ficar com medo de quando tem medo. E com medo de contar o que vive. Um dia, com a pouca coragem que lhe sobra, fala com uma adulta em quem confia. O que escuta é para ela não se preocupar, que é normal e que tudo vai passar. Isso tudo afinal é só ser adolescente. Como assim é só isso? Ninguém tem respostas?
Ana Santos, professora, jornalista
Conto “A miúda das luvas de boxe”
Estão sempre a dizer-lhe que fala demais. É irreverente, dizem uns. Irrefletida, afirmam outros. Tem de aprender a dominar os impulsos, concordam os demais.
Mónica está sentada à porta do gabinete do Diretor. Vai ser suspensa. Outra vez. A mãe vai enervar-se e o padrasto vai gritar e bater na mesa. Isso não a preocupa. Também não a preocupa o nariz partido do Sérgio. Ele mereceu, pelo que estava a dizer da Susana. “A conversa era contigo?” vai perguntar-lhe a mãe. E ela responderá que não, porque não adianta explicar.
O Nuno enviou aos amigos uma foto da Susana em roupa interior. A Susana está apaixonada pelo Nuno e, quando ele pediu, não quis recusar. Mentiu a si própria, que se sentia lisonjeada, mas tinha apenas receio que ela a desprezasse, se negasse. Agora, todos os rapazes da turma viram a Susana sem roupa. Mónica sentiu o sangue a pulsar na garganta quando se apercebeu da conversa entre eles e, quando Sérgio dirigiu à Susana um comentário lascivo, acertou-lhe, em cheio, um murro na cara, que o deixou a cambalear com o nariz num ângulo esquisito.
A Mónica não sabe ficar quieta. A Mónica não sabe calar-se. A Mónica não é uma rapariga que se porta como as raparigas se devem portar. A Mónica não consegue calar-se quando assiste a um abuso. A Mónica inscreveu-se numa academia de boxe, porque quer ter a certeza de saber acertar em cheio no palerma que tente humilha-la. A Mónica incomoda os adultos que acham que as mónicas vêm perturbar a ordem da sociedade.
- Entra, Mónica - a porta abre-se e o Diretor recua para lhe dar passagem – podes sentar-te - diz num tom que revela exasperação.
- Não esperava ver-te até ao final do período. – Pausa teatral, a ver se ela reage. Mas Mónica sabe que esta é a altura de manter a boca fechada.
- Será que não podes comportar-te como uma rapariga normal? Tens 15 anos! Já pensaste na vergonha que fazes a tua mãe passar? Andas à bulha, como um rapaz?
Mónica cerra os dentes com tanta força que sente uma pontada nas têmporas. Pensa na Susana, sentada no chão na casa de banho do pavilhão 3, a cara enterrada nos joelhos e os cadernos espalhados pelo chão, e quer explicar. Quer clamar por justiça. Abre a boca quando o Diretor suspende o discurso para respirar fundo, mas já ele continua:
- Vais ter três dias de suspensão. – mais uma vez aguarda a reação dela, levantando-se. É um homem alto e acredita que agiganta o seu triunfo. Ela encolhe os ombros e devolve-lhe a expressão de desafio. A ausência de submissão dela, fá-lo perder a compostura:
- Não serás ninguém na vida se continuares a comportar-te dessa maneira! Que homem te vai querer?! – vocifera nervoso, o pescoço arroxeado a transbordar do colarinho.
Monica está petrificada. Sente o destino guinar naquele instante. É a primeira vez que, sem pudor, a informam que a sua validação depende de despertar desejo de posse num homem.
- Ainda bem, porque eu não quero ser de homem nenhum. – diz, calmamente.
Pegando na mochila e no saco das luvas, sai do gabinete, sem olhar para trás. Satisfeita, faz o balanço e conclui, que nesse dia, ganhou uma briga, três dias de suspensão e um propósito.
Talvez até explique à mãe.
Cláudia Quaresma, convidada
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