Conto “Papai Noel em junho”
- ...E foi assim, mesmo que você não acredite. No meio da festa junina, ela chamava por Papai Noel, enquanto sua mãe ficava olhando pela janela do hospital, chorando.
Todo ano a cena se repetia – claro que com o Papai Noel foi uma vez só – Mas ela queria tanto ver a festa junina, os vizinhos soltando foguetes, dando bombinhas, que o pedaço tinha pólvora, ela tinha alergia e... sabe a fábula onde a neve prende os pés da formiguinha? Igual! Quem não lembra?
“Numa certa manhã de inverno uma formiga saía para o seu trabalho diário. Já ia longe procurar comida quando um floco de neve caiu, prendendo o seu pezinho. Aflita, vendo que ali poderia morrer de fome e frio, a formiga olhou para o Sol e pediu: Sol, tu que és tão forte, derreta a neve e desprenda o meu pezinho”?
Pois é. A menina, por causa da alergia, fazia sempre o papel da formiga que queria brincar, pular fogueira, comer cocada e bolo de fubá, mas que esbarrava na neve da alergia à pólvora. E caía doente todos os anos: febrão, 40º, delírios, laringite, hospital, inalação. No outro ano, ela escapava pra festa da escola – chegou a ganhar uma garrafa de licor de alguma coisa que tinha uma garrafa de peixe e vários copinhos, numa rifa. O resultado também todo ano se repetia: ficar presa em casa, normalmente de cama e não conhecer nenhuma festa junina, depois de cada escapada. A parte boa é que ela detestava as danças e vestidos de caipira; a parte boa é que tinha toda aquela quantidade de coisas gostosas e brincadeiras divertidas – que ela nunca curtiu nem quando morava em São Paulo, nem no Rio, nem no Sul – mas nem doía muito porque a festa não era assim tão importante. Mas ela se mudou pra Bahia e aí não poder experimentar começou a doer muito!
Nada de fogueira, as vezes em que tentou ir ao Pelô terminaram com ela de cama – de novo – uma vez teve laringite e conjuntivite – muitas fogueiras e fumaças , disse o médico.
E foi assim que sua vida – lugar onde ela adorava experimentar – ficou com aquela experiência presa na gaveta – havia outras coisas – mas as outras coisas não davam febre, nem tampouco traziam Papai Noel fora de época – o que talvez nem fosse uma coisa tão má, se ele trouxesse algum presente perdido no seu saco encantado.
Festa junina e ela, adulta, em casa. Ouve os fogos lá longe e se encolhe toda. Mas lá no fundo pensa no dia em que viu Papai Noel no inverno do Brasil e pensa “se não rolaria um presidente bacana, só pra variar”...
Suspirou, se encolheu em frente à TV e pensou:
- Quem dera fosse fácil assim! Já teria feito a cartinha, já teria me comportado como nunca na vida, Papai Noel!
Mais um foguete, daqueles que assobiam. Mais um medo de ficar doente.
- Amanhã, máscara, sem dúvida!
Ana Ribeiro
Conto “A Viagem”
Já passaram 30 anos. Que louco! Depois de terem vivido situações terríveis eu entendia porque eles sempre arranjavam uma desculpa para recusar o meu convite. Mas desta vez eu sabia que era a melhor oportunidade da nossa vida e insisti muito. Insisti tanto que até fiquei resmungona. Minha prenda de Natal foi um bilhete de avião para cada um, para me visitarem, com tudo pago. Ficaram sem palavras, aflitos, comentando que gostavam muito de aceitar mas que a última vez que tinham andado de avião tinha sido para fugir de uma guerra e não tinham muita vontade de voltar a viver isso. Eu era tão jovem, tão sem noção, tão patética que lhes perguntei se gostavam de mim o suficiente para aceitarem ou se afinal não valia a pena insistir. Isso foi um tiro no peito muito malvado da minha parte. Ficaram entre a espada e a parede. Aceitaram com o coração apertado e a cara de aflição de quem não poderia recusar esse tipo de convite-intimidação. Na primeira viagem de avião percebi o quanto deve ter sido difícil esse momento das suas vidas, fugindo de um país em guerra. Acabados de casar, ela fugindo sem ele junto com mulheres e crianças em aviões militares, sem saber onde estava o marido nem se o ia voltar a ver. Ele, aguardando a possibilidade de fugir, dias com a mesma roupa, dormindo onde lhe indicavam, viagens por vários países até chegar em casa. Um início de vida que terminou demasiado cedo e de forma intimidante. Naquele momento, tudo estava nos seus olhares, nas suas bocas secas, na sua falta de vontade de manter conversas, nas suas mãos agarrando as minhas. Eu, sem noção, super feliz por segurar a mão de cada um e me achando capaz de os proteger do mundo, da viagem, do universo, do passado. De tudo eu ria, de tudo eu achava piada, tudo eu dizia que tomava conta. Como era imatura e inocente!
Depois desse sufoco e de reviverem esse medo na primeira viagem de avião, o mundo se abriu. Seus rostos relaxaram, foram semanas incríveis, apreciaram cada segundo e eu fui uma privilegiada por ter podido acompanhá-los.
Rimos do fato de ele, por ter medo que algum avião caísse, ter assinado um seguro, deixando todo o seu patrimônio para todos os filhos menos para mim.
– Mas e se eu sobrevivo? Fico aleijada e sem dinheiro?
– Ahahahah, se nós morrermos, morres também, não te preocupes.
– ahahahahah, então meu Deus, se algum destes aviões cair, mata-me toda por favor...ahahah
– ahahahah...
Ela, estava tão feliz! Dizia que a atmosfera do lugar, da casa, das pessoas lhe faziam lembrar os tempos que viveu em África e isso era um dos elogios mais incríveis que se podia ter na vida porque o ambiente, os costumes, as pessoas em África a mudaram para sempre. Quase todas as manhãs, bem cedinho, lá íamos ao mercado comprar o nosso almoço-piquenique do dia. Partíamos de seguida para mais uma aventura, de viagem, de surpresas, de lugares encantados. Na hora do almoço, um lugar com sombra e com vista para aquele mar, para aquelas montanhas. Aquele silêncio, aquela beleza, aquela paz, entrava por dentro de nós. Lugares paradisíacos, sem vivalma, nós e o universo.
Nos dias que ficávamos em casa, estava proibida de cozinhar. As férias tinham de ser a sério! Ficava sentada, com as mãos inquietas sobre a mesa da cozinha. Eu olhava-a pedindo que relaxasse mas ela dizia que era difícil estar numa cozinha sem nada para fazer. Sofreu pela novidade, mas ao mesmo tempo, pôde saber o que era ser cuidada.
Ele me propôs dormir no quarto deles, numa camita, para tudo ser mais barato e podermos aproveitar esse dinheiro para outras coisas. Aceitei na hora e foi super engraçado, super confortável e nos permitiu aprofundar a amizade. Eu fiquei a admirá-los e a amá-los ainda mais.
Tudo foi perfeito, mas tão perfeito que o final daquelas férias tinha de ser um pouco doido. E foi... Todos contentes admirando esculturas de rochas vulcânicas muito famosas, nem prestávamos atenção ao que o taxista falava.
- Os senhores não disseram que iam hoje embora?
- Sim, vamos hoje. Daqui a duas horas.
- Olhe que o seu avião já está na pista. Sabe? Aqui na ilha todos sabemos os horários dos aviões porque a ilha é muito pequena e aviões, chegando e partindo, são acontecimentos importantes. Vocês não ouvem o barulho dos motores e não o veem ali ao fundo?
- Sim, sim, claro, mas não se preocupe. A gente já tem as malas no seu táxi mas realmente ainda não é esse o nosso avião. O nosso é o próximo.
- Mas senhores, aqui na ilha só passa um avião por dia.
- Olhe que hoje devem ser dois então...
- Os senhores não estão entendendo...o avião vai sair daqui a uma hora.
- E o nosso sai daqui a duas horas...
- Mas não tem mais voos hoje...nunca tem mais de um.
- Mas o horário do voo não é agora, é mais tarde uma hora.
- Senhores, vejam seus bilhetes de avião por favor...
Quando, toda cheia de razão, olho o bilhete com mais atenção, nem sei se falo, ou se corro, ou se grito.
- Por favor, leve-nos ao aeroporto o mais rápido que puder....
- Tudo bem! Estamos perto, não tem problema...os senhores não queriam ouvir...quase que ia correr mal...
Correria, medo de perder o avião, trapalhada, muita trapalhada...aliviados, dentro do avião, muitos risos de nervoso, de alívio, de alegria por terem tido a sorte do taxista ser boa pessoa, paciente e tolerante com 3 pessoas que iniciaram uma viagem com medos e no final já pensavam que sabiam mais do que o mundo...
Ana Santos
Conto “A falta”
Sentir falta para nós portugueses reduz-se, habitualmente, a uma simples palavra - SAUDADE.
Venha ela do latim solitate (isolamento, solidão) ou do árabe saudah (sangue pisado, preto dentro do coração), "... é a metáfora perfeita para alguém que carrega no seu coração uma profunda tristeza, a solidão de algo ou de alguém ou a melancolia de uma perda ou momento desejado."
E todos nós já a sentimos em algum momento.
Num sentimento mais doloroso e íntimo ou numa lembrança mais gostosa e desejada, lá vamos matando a saudade.
E não deixa de ser curioso este sentimento, e tantas vezes necessidade, de "matar saudades".
Na verdade, ela configura e modela todas as nossas vivências, as boas, menos boas e também as más que lá se vão resguardando.
E as saudades vêm surgindo com frequência porque a falta tem rondado por aqui nos últimos tempos.
Aquele aperto no coração que nos traz empedernido e tantas vezes insensível e apático.
E lá vamos tentando deambular nas memórias que nos fazem bem, que nos apaziguam a alma e o espírito… momentos comuns e triviais de uma convivência que sentíamos especial e sublime.
Lembrando aquela refeição em família, com a mesa envolta por alegres rostos extasiados com uma ementa cuidadosamente confecionada pelo “amor de uma vida”. Na confusão instalada, (que há muito fazia parte do acto), e entre boas e recheadas garfadas lá íamos remexendo também as memórias do passado, as histórias de infância ou aqueles momentos inolvidáveis que terminavam muitas vezes em sonoras gargalhadas.
Nos momentos, ainda criança, numa cozinha enegrecida, e à volta da lareira saboreando um reconfortante caldo de legumes preparado pela avó na aurora dos dias frios de Inverno e “suavizado” na sua robustez por um bom copo de tinto. Para os mais franzinos, sobre as brasas, havia sempre um bom naco de carne ou enchidos silenciosamente degustados sobre uma fatia de pão de verdadeiro centeio.
Em dias normais a refeição à hora certa, como impunha o patriarca da casa, com o banhinho tomado e o pijama já vestido que logo após era tempo do “xixi e cama”.
Em dias festivos ou de convivas especiais, aí a mesa tomava outro rosto e estatuto especial. Eram os momentos de todas as tentações e desafios. Daquele rissol surripiado com a maior perícia ou o mistério da patanisca desaparecida que, ainda quente, repousava já na boca do mais destemido. E, tantas eram as tentações gustativas, que até ao fim da refeição continuavam os estímulos numa agitação e provocação contínuas logo censuradas por um dissuasor olhar.
Dos domingos em que o acordar era embalado pelo cheiro do assado que percorria toda a casa, dum pequeno-almoço sem igual antecipado com um largo sorriso de quem espera, ansiosamente, os seus mais queridos.
A mesa e as refeições como lugar de todos os encontros, reencontros, partilhas e contendas. Um ritual familiar, ao longo dos tempos, modificado nas suas dinâmicas e comportamentos pelo ritmo acelerado do dia-a-dia duma sociedade dita contemporânea.
Hoje, à mesa e só, sinto falta e a saudade voltou a fazer das suas.
E, como diz a canção, “que o Amor nos salve… nesta noite escura”.
João Paulo Pimentel
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