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2 Contos: “UM OLHAR NA MESMA DIREÇÃO” e “É o que é”


Calçadão da Praia de Copacabana, de Burle Marx

Conto “UM OLHAR NA MESMA DIREÇÃO”

Ela observou cuidadosamente aquelas pessoas online, diante da situação do mundo: era impressão sua ou pareciam surpresas com a descrição da possibilidade real de guerra total falada pelo empresário? Continuaram sentadas – imóveis – na verdade, eu é que me mexia sem parar na cadeira porque o assunto me incomodava muito.

- O mundo vai acabar com o fogo das queimadas do Brasil e as bombas caindo do lado de Israel, Síria, Turquia, Líbano, Irã, Ucrânia, Rússia, bombas e bombas por todos os lados, enquanto as pessoas, sentadas em suas cadeiras, apenas levantam as sobrancelhas noite adentro, quando alguém diz que “logo, logo” podemos ser mortos pelo nosso egoísmo! Que droga!

Suspirou fundo e guardou silêncio. Alguma coisa havia se quebrado na relação entre as pessoas, no Brasil, no mundo. Ninguém parecia satisfeito, mas se esperava que a solução aparecesse sem se fazer nada.

- Se fosse um jogo, seria o clássico “deixa que eu deixo”, pensou.

O fato é que estavam à véspera da eleição e 80% do tempo havia sido perdido em reclamações de todos: candidatos e eleitores ricos, pobres e remediados.

- Como, meu Deus, ninguém vê que reclamar é inútil?

Os políticos – mesmo os que não iriam se eleger – saiam ganhando, à medida em que não se precisava apresentar, afinal, um planejamento de ações para as cidades. Você reclamava, xingava e pronto – tudo resolvido...

Lá longe, de repente, uma esperança: havia um discurso que se destacava. Era prático e via a realidade, mas pensando em saídas. Quis se aproximar. Conversaram.

- Será que... Talvez...

Mas principalmente, pareciam querer as mesmas coisas... Inclusive, conversar.

No dia seguinte, se sentaram em torno da mesa e por duas horas falaram. Comunicação é assim – se você pergunta como posso ajudar, precisa ouvir o que tenho a dizer. E muito foi dito. Ao final, o abraço brasileiro/baiano sela o fato de que nos vimos e queremos nos ver mais, falar mais. O abraço que é tão incompreensível na Europa e que aqui a energia, o papo, pode construir no momento da chegada...

Nos abraçamos todas – uma mulherada – e ali - ela poderia quase afirmar – havia um pacto de boa vontade.

- Reconstruir relações humanas vai precisar de alianças profundas e já me desculpando – meu trabalho é criticar.

Olhares, café e amor. Elas viram milhões de pessoas recuperando seu senso crítico e cobrando soluções.

- Só no papo, só na negociação, podemos chegar bem longe...

- Ah, o Iroko e a magia do tempo...

Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV

 

Conto “É o que é”

Não queria acreditar quando comecei a ver a fome e a miséria, bem do meu lado. Aquele homem que vivia pelas ruas - “o Jamaicano” - que fazia cocó na minha frente, bem na luz do dia – pelas 10h30, no calor “que te cozinha por dentro” de Salvador. Na primeira vez vejo ele se levantar depois de se agachar, aquele cheiro chegando no meu nariz, e ele sorrindo, mostrando seu corpo definhado e nu e vestindo as calças, sem se limpar. Até hoje me lembro disso e do medo de virar “a portuguesa” – já que ele era conhecido por ser o Jamaicano, eu podia ficar conhecida por ser a Portuguesa fazendo minhas necessidades na frente de todos que passam e nem ligar nenhuma para isso.

É o que é...

Estes dias, pela manhã quando passo na caçamba para deixar meu lixo, vejo um colchão no chão, com uma mulher e um homem deitados. Os carros passam do lado, eu passo do lado caminhando. Caramba, eles têm a minha idade. A mulher olha-me tranquila e me trata bem: “e aí amiga, tudo bem?” Eu fico tão, mas tão sem jeito, que no meio dessa desordem emocional, lá consigo responder: “opa, tudo certo”. Ontem, ela foi buscar duas crianças na escola, na minha rua. Um menino e uma menina tão fofos, devem ter uns 8 a 9 anos. Viu-me e falou de novo:

- E aí amiga? Tudo certo?

- Tudo – respondi eu sem nem saber se continuava a conversa.

Olhou os meninos e disse:

- Sabe? Não era para acontecer, mas o que podia fazer quando soube? Tem que cuidar né?

- Fez bem – respondi. E gostava de ter tido coragem para lhe dizer que ela tinha uma riqueza naqueles meninos, que é sempre tempo de mudar, que ainda é tão nova. Mas não tive.

Os meninos ouvindo aquela conversa sem jeito, eu sem saber onde me enfiar pensando que aquela mulher é da minha idade. Mais tarde passei na rua do colchão e lá estava ela sorrindo, deitada junto com um cara. Onde estavam as crianças? Não estavam ali, o que era bom. Eles estavam com uniforme da escola, com mochila, quando os vi. Talvez vivam com a avó, como centenas e centenas de outras crianças.

É o que é...

Tem um local aqui perto de casa que tem sempre muita comida e bebida, misturada com droga, prostituição e sei lá mais o quê. Perto, mas afastado o suficiente para nunca por lá passarmos, principalmente de noite. No São João/festas juninas, uma mulher da rua passou aqui por casa e queria que fossemos lá, para curtir uma festa que iam fazer. Eu dei-lhe água para ela lavar o cabelo, para lavar uma louça que encontrou no chão. Fiquei muito feliz por ela pensar na gente. Ela disse várias vezes que ninguém ia tocar na gente, que estávamos protegidas. E eu sei que íamos ser bem tratadas. Mas, com todo o jeito do mundo, agradeci mas disse que a gente não é muito de festas, que já somos velhotas, que não bebemos, e mais uma série de justificações, para ela não ficar ofendida. Fiquei feliz com o convite mas nunca iria para quele lugar. O medo supera.

É o que é...

Quero consertar estas coisas, mas é tudo tão complexo. Por vezes, quanto mais ajudo mais quero ajudar e mais consigo ajudar. Outras vezes, quanto mais ajudo mais acumulo problemas na minha vida e menos ajudo a melhorar. É o que é. A dança da vida. Uma dança que alegra ou que magoa, que nos testa a todo o instante. Dizem que não devo ter medo de virar um “jamaicano”. Que não devo ter medo de passar naquele lugar. Que devo aceitar que existam pessoas a dormir no chão, no mesmo chão que piso, onde passam carros, ratos, onde é depositado nosso lixo, onde reside cheiro de podre, onde os pombos pousam e bicam tudo. O fim de linha dos nossos alimentos e objetos das nossas casas. Não gosto do “é o que é”. Nada para mim é o que é. Nada é estanque. Tudo pode ser ou não. É o que é porque apenas olhamos, aceitamos. E seguimos. Mas como posso eu alterar este “é o que é” nestas pessoas? Nestas vidas? Se abro a minha casa penso que elas não sabem dividir. Se me aproximo penso que elas não sabem partilhar. Porque tenho MEDO.

É...é o que é...por enquanto...

Ana Santos, professora, jornalista

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