Conto “Mulheres presas, tarados à solta”
Ela passou na direção do shopping e escutou sem querer a conversa de um grupo de rapazes:
- Qual é? Ela tava querendo! Deu muito mole com aquela roupa! Mas você viu? Fui lá e nem quis saber, Mané... Peguei mesmo...
Ela achou o papo muito estranho, mas entrou no shopping porque morria de fome. Nem conseguiu chegar ao seu restaurante favorito porque o tumulto tomava conta do térreo todo.
- Tem um tarado no shopping! Menina, um cara novinho entrou no banheiro e tentou abusar de uma garota que estava lá dentro.
A sorte é que quando ela gritou as mulheres reagiram e ele fugiu.
Ela lembrou do grupo ali na entrada do shopping, de quando chegou – será possível?
- Peguei mesmo...
Desconfiadíssima, saiu em busca de um policial. Demorou um pouquinho, mas quando o encontrou, ele logo se dispôs a acompanha-la à entrada do shopping. Lá estavam os caras, ainda comentando. O policial ficou por ali e eu falei logo:
- Quem de vocês tentou pegar a garota no banheiro feminino?
Silêncio...
- Deve ser um homem sem nenhuma vergonha na cara, dado que está sendo chamado de tarado, dentro do shopping!
Silêncio...
Ela foi chamar a menina assediada, mas para os amigos o que ele fez não merecia censura alguma; ele não era tratado como tarado, mas sim como garanhão...
Entregou o rapaz para a policia, foi junto pra delegacia, mas havia uma falta de compreensão dos homens sobre o mal estar que gera, na mulher, o assédio. Sim, porque para eles, era um prova de virilidade; pra nós era a presença do “tarado” - velho conhecido de todas – dessa vez no shopping, mas que podia ser em qualquer lugar, status ou profissão porque homem sem noção havia aos montes, no mundo...
- Ih, tia... Deixa o cara... Ele não tava fazendo nada demais, não...
Agir como um tarado, um predador sexual, era visto pelos homens de outro modo... Se fosse a mulher a passar a mão neles... aí nem pensar...
Prestou depoimento, serviu de testemunha, perdeu o almoço e a tarde inteira naquilo. Morrendo de fome, foi comer no shopping – o mesmo. Quem estava lá? O tarado. “Se sentindo”...
- O Delegado era homem e logo aliviou meu lado!
- Se respeite, tarado...
Olhou ao redor. Tantas mães, irmãs, namoradas... Todas sentindo a força da opressão – de séculos!
- Ta vendo, coroa? Foi se meter e se deu mal!
Sociedade besta...
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “A Vida na minha mão”
Tenho medo de morrer. Sempre tive.
Em menina tinha medo daquilo que fazia todos os adultos ficarem com uma cara aterrorizada, pálida, corpos que desmaiavam, bocas que gritavam, pessoas que surtavam, que fazia todos chorarem – mesmo os que nunca tinha visto chorar – que mudava as pessoas para sempre, que mudava a cor da sua roupa, que aumentava profundamente a sua tristeza e os seus silêncios. E aquilo vinha sempre de surpresa, mesmo quando a pessoa estava muito doente. De repente, o ambiente mudava, nenhum adulto via da mesma maneira os mais jovens, não se chateavam da mesma maneira, não escolhiam as mesmas palavras. Era outro mundo.
Como mulher os cuidados foram sempre redobrados. Cuidados a sair de casa, despedidas pela manhã com jeito de “até logo”, mas ao mesmo tempo se te acontecer alguma coisa – se morreres – te olho uma última vez, me despeço com medo de não mais te ver. Vivemos isso toda a vida e por vezes sinto que nem vivemos completamente porque o medo de morrer nos faz viver menos, viver sem viver totalmente. Posso ser atingida por um tiro, atropelada, assassinada, envenenada, ada, ada, ada, ada. Posso não viver com medo de morrer. Não respondas a estranhos, se vier alguém dizendo que te veio buscar porque teus pais pediram, não entres no carro. Não aceites comida, bebida, nada de estranhos. Agradece e recusa amavelmente.
A vida vai avançando aos trancos e barrancos, e eu com mais ou menos medo de alguém morrer. Tem dias melhores, tem dias difíceis. Começo a imaginar como será comigo. Vou sofrer? Alguém vai sofrer por eu partir? Para onde vou? Existem muitas teorias, religiosas e científicas, que amava que fossem verdadeiras. Mas não sei, só saberei quando for a minha hora. Sabia muito, sabia bem animar as pessoas, mas cada vez sei menos. Descobri que ninguém sabe afinal. E agora penso que talvez seja isso que assustava os adultos quando eu era menina, e que me assusta e nos assusta a todos. Não saber para onde, não saber como, não saber para quê, não saber se estaremos melhor ou pior, não saber se todo o nosso esforço aqui serviu para alguma coisa, para algo maior do que nós.
O corpo apaga, desliga, degrada. A sensação de presença, a memória, as aprendizagens dessas pessoas permanecem. E eu? Estou aqui, neste corpo, sofro com ele. Um dia ele não vai aguentar e eu saio de cena. E o que acontece na minha cabeça também? Ou este pirilampo interior que não para de me trazer ideias, projetos, sonhos, vai permanecer agitado, ativo? O que é fim? É que na vida sempre que existe um fim, existe outro início, outro caminho. A vida não para, a vida é movimento. Será que a morte é paragem? E o que é parar?
Aquele pai, agarrando com a sua mão, a mão de sua filha, após os terramotos/terremotos na Turquia e Síria. Um olhar sem caminho, um corpo numa posição frágil, quieta, de total abandono afetivo. Um corpo apenas arrumado, sentado, segurando uma mão. Segurando o amor, a esperança, a vida, o futuro. Que se foi, que parou. Num instante. De surpresa de novo. A dura e dilacerante morte. Ele está sentado no meio de escombros mil, num lugar que não tem mais nada. Mas o que é nada? Para onde ele vai? Onde existe um lugar que tem mais do que o pouco que lhe resta ali? Mais do que a mão da sua filha? Largar aquela mão é perder tudo. Que mãos nunca largamos? Que mãos largamos e com elas perdemos o que somos? Que mãos nunca devemos largar?
A morte ronda. Ultimamente ronda muito. Nem nos dá tempo para digerir o luto e cuidar dos que sofrem mais, já estamos tendo de cuidar de outros, por causa de mais mortes e mortes, lutos, lutos, lutos. São 700 mil, depois são 21 mil, depois são sei lá eu...são pessoas, são os nossos, somos nós.
Na nossa mão seguramos algumas mãos. Para sempre. Seja aonde for, seja quando for. A mão vai fechada nelas. Com elas.
Tenho medo de ti morte, sempre terei, mas isso não me tiras.
Ana Santos, professora, jornalista
Comments