Conto “COISA DE HOMEM”
Podia ser qualquer um, ter qualquer nome. Podemos então chamá-lo de... Dan. Tinha a história de inúmeros e poderia ser um exemplo, mas talvez devido à vaidade, ao excesso de poder e mimos sociais derivados do dinheiro, Dan – assim como muitos – teve seu modo de ver a circulação de pessoas ao seu redor contaminada pelos seus desejos. Assim, se estava numa boate e via uma menina, não pensava “menina” porque via carne, desejo, objeto, vagina, sexo - a qualquer preço e fosse como fosse. Parou de ver o desejo de todos os que não fossem ele mesmo. E como todos os seus colegas, talvez devido à vaidade, ao excesso de poder e mimos sociais derivados do dinheiro, que agiam e pensavam como ele, acabaram criando entre si, escudos protetores, onde todos poderiam fazer tudo – desde que ninguém soubesse.
Claro, precisavam de um pequeno exército para “silenciar” o mundo real, ao seu redor. Eles podiam pagar pagavam para obter silêncio. Aliás, se eles pudessem ter o que quisessem, dinheiro não faltava para calar os agredidos – no caso, “AS”. AgredidAS.
Talvez devido à vaidade, ao excesso de poder e mimos sociais derivados do dinheiro, essa espécie de “banditismo coletivo masculino” durou tempo indeterminado. Do mais pobre ao mais rico, eram asquerosamente protetivos. Ninguém mais sabia quando um começara a acobertar o outro – o fato é que se havia uma denúncia, vozes tímidas começavam a defesa, depois usavam pequenas mentiras, menosprezos e finalmente, as descaracterizações do caráter das vítimAS:
- Queriam mesmo era indenização! Vieram pra se “dar bem”! Coitado, se jogaram em cima dele!
E assim, de sujeira em sujeira, escalaram para a percepção de que eram inatingíveis. Mas dependendo do País, da legislação, da polícia, da perícia, do médico, da ambulância, do hospital, do socorro, do machismo vigente, de crimes anteriores e da quantidade de dinheiro que a própria vitima tinha, o nível de cobrança poderia mudar.
E um dia, mudou. Ninguém sabe onde a história acaba, mas a princesa interesseira virou a nossa rainha justiceira. Bastaram as condições serem diferentes e a frágil, em lágrimas, olhou firmemente para seu futuro e decidiu mudar todo o rumo costumeiro da história.
Dan, na verdade, não é nada senão mais um rico ignorante a respeito de quem é – e principalmente - de quem somos. Seu “órgão” – para si e socialmente rico e poderoso, talvez devido à vaidade, ao excesso de poder e mimos sociais derivados do dinheiro – finalmente, tomou o lugar que merecia e agora, cabisbaixo de culpa, se retrai, envergonhado – ainda não do ato – mas de suas consequências. O grupo masculino teme o resultado: A vítimA não pode ganhar nunca porque isso é um exemplo, um precedente. Quando as partes se enfrentaram, nunca aconteceu de não ganharem.
Mas não importa mais. O grupo, o “órgão”, o acobertamento, as marcas pessoais – tudo eram provas indiscutíveis que eles nunca mais poderiam deixar para trás por medo. Mas para tanto, não as poderiam mais mostrar e nos seus corpos - que, obedecendo o lugar comum dos que se imitam são lotados de marcas identificáveis – havia evidências sem fim.
Assim, usando como chave a dor que extravasa de sua emoção, a vítimA abriu a porta da história – o gênero feminino olha tudo e promete nunca mais – NUNCA MAIS – esquecer.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “Um dia...”
- Ana, vamos? O Carnaval começa hoje! Tu vem com a gente? Saímos umas 18h, logo que termina o trabalho. Ok, para você? Tem de vir. Tu é a única mulher que a gente gosta que venha com a gente.
- Não sei, Luís. Este ano acho que vou ficar por casa.
- Nem pensar...Não, não...
- Olha, é mesmo hoje...
- O quê?
- Esse Daniel Alves me fez levantar muitas más recordações. Quero vos falar de uma coisa. Uma coisa que acontece. Muitas vezes. Eu tinha as mesmas regalias que meus irmãos e meus primos, até virar mulher. Desde esse momento tudo mudou. Imagine que o mundo é colorido. Imaginou? Um dia você tem sangue saindo do lugar perto de onde sai seu xixi e o mundo fica cinza. Para sempre. Você passa a “pisar em ovos”. Se fica muito efusiva quando vê cada um dos seus amigos homens, talvez seja destravada, oferecida. Muitas vezes os nomes são bem piores. Precisa aprender a tocar menos. Se foge de todos ou não lhes dá confiança, vira doente, frustrada. Será alvo de chacota. Perde regalias, perde direitos. Não pode mais sair à noite de qualquer forma, não pode mais ir onde deseja quando deseja, não pode mais falar de tudo o que sente, pensa e deseja. Se não casa nem tem filhos vira um problema. Se casa e não aceita as traições do marido, não é forte o suficiente. Se enfrenta os homens em discussões, em negócios, em trabalho, eles se sentem atingidos e com muita frequência tentarão diminuir sua honra. Nas suas costas, claro. Eles nem se dão conta do que fazem ou dizem, mas podem ser coisas tão simples como: “deve estar com problemas de peso”, “o marido já deve ter outra”, “está mais gorda e feia e ainda por cima acha que tem opinião”....etc, variando conforme a cultura, o país, o estatuto social. Os homens se unem nesse “desmatamento ilegal” e ainda buscam mulheres aliadas. E algumas mulheres aceitam, achando que serão colocadas como iguais – tadinhas das inocentes, nem percebem que se estivessem no lugar daquela mulher, eles lhe fariam o mesmo. Tem mais, muito mais, mas é suficiente para vos dizer que com isto a gente já se habituou, aguenta na boa. Lá vamos vivendo, amando docemente nosso universo cinza, engolindo todas estas palermices, jogos de manipulação, mentiras escalavradas, boatos destruidores, conclusões inventadas. Já nem arranha, estamos blindadas pelo tempo e pelas cicatrizes e já nem piscamos. Mas aí vem um departamento onde está a ficar difícil “aguentar”, calar, silenciar. Uma mulher que sofre assédio, estupro, violação, é como se todas sofressem. Todas sem exceção. Conseguimos imaginar, sofrer, sentir. Porquê? Porque todas nós já estivemos em situações onde podia ter acontecido o mesmo, ou aconteceu o mesmo e tivemos de calar e aguentar. Você têm ideia do que isso é? Vocês sabem lá... Vemos o vosso silêncio, o vosso desconforto. Vemos que sabem a verdade mas não a aceitam. Vemos a vossa tentativa de descobrir algo naquela mulher que a possa incriminar. Mesmo sabendo que ela não tem culpa nenhuma, vocês deixam de ver aquela mulher conhecida, amiga até, para ver “um alvo” a atingir, a esmagar, porque um dos vossos amigos “machos” está a ser incomodado. O vosso silêncio é visível, a gente sabe e observa, como sempre. Mulher vê tudo, mas fala muito pouco do que vê. E vocês sempre dizem que mulher fala muito. Fala de baboseiras, sim, mas para não morrer de desgosto nem de tristeza porque não pode falar do que sabe, do que vê, do que lhe fizeram. Não vale a pena, vocês não valem a pena. Vocês sabem o que é viver de verdade? Ou fingir já é viver de verdade para vocês? Um homem estupra uma mulher e vocês correm para salvar o homem? Vocês sabem o que isso significa para cada mulher? Hoje não vou ao Carnaval. Me liga amanhã, pode ser que eu consiga voltar para o modo “cinza”, modo “aguenta”. Por que hoje, hoje quero ver as cores, quero gritar, quero respirar, quero pensar e emanar energias boas para o gênero feminino que sofreu e sofre abusos.
- Puxa Ana, nem sei o que dizer. Um dia acho que devemos conversar.
- Um dia...precisamos...isto não pode ficar, nem continuar assim...
Ana Santos, professora, jornalista
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