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2 Contos sobre Dinheiro


Conto “O PARADOXO DO DINHEIRO”

Ele, por menos que se queira, vive se metendo em nossas vidas. Virando-as de cabeça pra baixo.

- Troque de celular, aumento dos remédios, poupe para sua aposentadoria, aposte na bolsa, em bitcoins, pague R$47,40 em 12 vezes e aprenda a faturar 6 zeros – o marketing, com as mesmas palavras de sempre, sevicia pessoas.

- Aposte com o PIX, jogue no GREEEENNNN, quem não aposta não ganha, vai deixar passar essa?

Bem, aí você prova que é uma pessoa responsável e regulada e consegue um trabalho onde, mesmo ganhando menos, garante sua aposentadoria. Sem ventos imprevistos. Até que vem o imprevisto da COVID, você adoece gravemente e fica sequelado.

- Que pena... marque a perícia... Não posso mais te dar dias de folga...

Depois de quase 3 anos de exames, medicamentos, perícias, consultas, exames, dores, mal estares, a luz da possibilidade de aposentadoria abraça seu interior cansado de guerra.

- Mas... só veio a metade do meu salário, gente...

E o emprego regular, responsável, onde você sabia que ganhava menos, mas tinha a garantia de que seria tratado com dignidade – olhando bem de perto – era um desaforo.

- Me obrigaram a sair do home office e fazer atendimento ao público. Eu adoeci. Não tinha vaga para me internarem e eu fiquei em casa com a tal COVID de longa duração. Sequelei brabo. Aí me internaram e adivinha? Peguei COVID de novo. Vendo as pessoas da minha enfermaria adoecerem e morrerem. Na minha frente. Enganei a morte de novo. Mesmo com problema, não morri. Mas a Previdência me pegou. Me enganou. Me roubou.

Levantou os olhos e os passou lentamente pela casa.

- Você faz um plano e...

Seus olhos pousaram nas contas que tinha – de quem ganhava o dobro daquilo que tinha na bolsa, na hora. Como se adequar só à metade?

- O Governo acha o quê? Quem decide isso, sabe o quê de mim?

Seus olhos passeavam pela sala, sem muitas emoções. Talvez um pouco de raiva - ela pensou. O cachorro da vizinha uivou.

- Qual o segredo da felicidade? Será difícil viver só?

Sem saber o que fazer, separou as contas, desamassou-as lentamente e as esticou muito bem na mesinha da sala.

- Eu decidi tudo na minha vida, mas esse final, honestamente... essa pensão... eu não esperava isso do Governo, não...

Com os olhos baixos, entrou no elevador. Mas como ela iria na farmácia agora? Como viver, sem precisar tanto de sobreviver?

- Como?

Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV


Conto “Um mistério chamado dinheiro”

Olho a nota. São 50 reais. Essa mesma quantia já teve diversos significados e importâncias. Já gastei muito mais do que isso em patetices e já o fiz para situações muito importantes. Já ganhei essa quantia em muitas horas trabalho bastante humilhante. Já ganhei esse dinheiro em segundos trabalhando no que amo. A vida parece ter lógica, umas vezes, e não ter lógica nenhuma, outras. O dinheiro é necessário - sem ele não é possível viver. Viver só em função dele também não é saudável. Escolher trabalhos seguros, estáveis, é uma boa estratégia, mas isso não dá a ninguém um futuro certo e confortável. Viver uma vida sem organização, repleta de riscos, pode ser um caminho para o mergulho num buraco de miséria, dificuldades, desorientação, ou te dar felicidade e por vezes a sorte de encontrar filões de dinheiro com seu talento fora do comum. A vida tem muitas cores e elas vão se alterando – umas vezes vão ficando mais bonitas, outras vezes vão ficando mais apagadas ou desbotadas.

Achamos que entendemos tudo mas na realidade talvez o que a gente entende seja nada.

Em menina bem pequenina, tinha medo de perder aquele papel estranho, com desenhos e números, porque os humanos adultos avisavam mil vezes, pediam mil cuidados, assustavam a minha cabeça infantil. Tantos avisos acho que me construíram demasiados medos, mas mesmo assim, naquele dia que fui ao mercadinho com o dinheiro na mão e o recado na memória, não hesitei em aceitar jogar futebol. Era só um pouquinho, os meus colegas estavam tremendamente entusiasmados e o meu amor por aquele jogo nem permitiu vacilos. Não tinha bolsos, não podia mostrar aos coleguinhas que tinha dinheiro na mão, olhei um vaso de flores com ar de esconderijo e coloquei a nota ali. O jogo estava tão bom, marquei tantos golos, corri tanto, que esqueci o tempo, esqueci o recado, esqueci o dinheiro. Os meus coleguinhas tiveram de ir embora e só aí me perguntei o que estava ali a fazer. Gelei, senti-me pálida, dor de estômago, dor de barriga – o que era mesmo que tinha ido comprar? Tinha levado dinheiro? E se tinha, onde estava? Tive de voltar para casa com vergonha e medo. Como ia explicar à minha mãe que de novo aquele jogo de rapazes, me tinha distraído? Que, de novo, tinha esquecido o que tinha ido comprar? E para piorar e muito, como era possível a minha mãe aceitar que eu não sabia onde tinha escondido o dinheiro? A minha mãe fez a cara que fazia sempre – e que nunca mais esqueci – sempre que eu complicava a sua vida já cheia de tarefas e trabalhos e canseiras. Além disso, minha mãe fez o que nunca fazia – saiu da cozinha e foi comigo pela mão, ao mercadinho para que eu lhe dissesse onde tinha colocado o dinheiro. Minha vergonha bateu no céu!!! Acho que minha mãe pensou que eu tinha dado o dinheiro a alguém – porque quando ela foi olhar o vaso que eu falei que devia ter o dinheiro e o encontrou, ficou surpresa. Um assunto resolvido pelo menos – eu já não tinha certeza de nada e isso deu um enorme alívio. Mas aí minha mãe me levou pela mão ao mercadinho e aguardou que eu me lembrasse do recado. Não me lembrava. Mais uma vez na sua cara a desilusão. Ela mesma fez o pedido e, quando voltávamos para casa, cada passo que dávamos afundava mais um pouco a minha vergonha, o meu medo em relação ao dinheiro, a minha sensação de não prestar nem para fazer um simples recado, nem ser capaz de cuidar de uma nota, de proteger o dinheiro, de ser capaz, de ser confiável. E nem era uma nota de 50 reais. Imagina se fosse...

Ana Santos, professora, jornalista

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