Conto “FARISEU TAMBÉM SE VESTE DE CORDEIRO”
Ela recebia de seus amigos (ou ex-amigos) mensagens falando barbaridades acerca de coisas que antes, ela tinha certeza serem corretas. Estado Laico, por exemplo. Pedofilia ser crime, por exemplo. As diferentes religiões do Brasil serem respeitosas umas com as outras, por exemplo.
- É... Mas parece que a carne dos pastores é fraca...
Os candomblés foram o começo. E num País de preconceitos hipocritamente ocultados, se não fosse a Bahia gritar – a mais negra entre os negros, a mais bela entre os belos - talvez ninguém ouvisse. Mas o passo contra os candomblés foi apenas o começo...
- Porque a carne dos pastores é fraca...
Veio a invasão da Igreja da Senhora Aparecida. O álcool na caneca, no lugar do respeito.
Veio o pastor e a política, no lugar do Senhor.
- Porque o poder corrompe e a carne é fraca...
O discurso de Deus virou o do mito e o pseudo mito quer virar o Senhor.
Éramos todos irmãos até ontem. E a herança que todos receberíamos era o céu.
- Quando o céu virou dinheiro, fortuna, poder, política?
Abriu a Bíblia. Ela lhe parecia tão sagrada quanto o era ontem e anteontem. Olhos fixos. E uma lágrima. Quando um irmão perde o respeito pela casa do outro e a invade, o que esperar?
Poucos momentos depois, o mito que invadiu as igrejas confessa numa Live da internet que viu pelo celular, incrédula: “Pintou um clima entre ele, de 67 anos e crianças de 13. Parou a moto e pediu pra entrar na casa delas.
- “Pintou um clima”.
A frase nojenta. Aquela que merece a bofetada e o dedo que busca rápido o 190. A frase que todas as mulheres sabem. Conhecem. Pressentem. Aquela que está ao redor de se ter uma vagina.
Há homens que o defendem. Há quem continue a compará-lo com Messias. Mas para ela, era apenas a dor de ver mais mulheres, todas pobres, refugiadas, a serem rotuladas pelo mal que habita a cabeça nojenta de um homem – e não! – Nada daquilo poderia ser comparado ao Cordeiro de Deus que nasceu para tirar os pecados do mundo. Para ter piedade de nós.
A primeira lágrima rolou e ela nem percebeu. Muitas a seguiram.
- Se só houvesse ele, ainda assim não seria este o homem a quem eu entregaria minha confiança, meu voto. “Pintou um clima” de bofetada entre nós. E é pra sempre, pode contar com isso.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “Sabiá sempre salva”
Que mundo é este? Deve haver algum engano. As mudanças do mundo eram sempre estranhas, umas boas, umas não tão boas, mas o mundo lá ia aos “trancos e barrancos”. Mas agora, não sei se foi a pandemia, se foi a minha funda distração, mas o mundo, de repente, deu um avanço em direção a um caminho ainda mais estranho, preocupante, bizarro. Ucranianos, porque Putin decidiu anexar partes do território da Ucrânia, terão de combater contra ucranianos. Pela Lei Marcial que Putin implementou, os homens dessas zonas não podem fugir, sair do país, evitar essa hedionda medida. O mundo assiste. O mundo não sabe o que fazer, apesar de saber que é horrível. E se fosse eu? Ter de combater contra meus amigos, meus irmãos? Isso é verdade ou um pesadelo?
Cristiano Ronaldo amuou porque o treinador quis colocá-lo nos últimos minutos, ganhando por 2-0, contra o Tottenham e sua excelência não quis – recusou, saiu do estádio antes do final do jogo. Depois deixou comentários nas suas redes sociais – para ganhar mais algum, dizendo “que não é de ferro”. Quando tudo estava bem na sua vida, parecia. CR7 está a aprender o que nunca aprendeu nesta vida de futebolista de sucesso. Não chega ter sucesso, nem chega ser rico, a vida um dia nos apanha e teremos de a enfrentar. Difícil é ser bom, justo, “enorme”, quando a vida nos aperta – está na hora de aprender com a mãe, com o que a mãe sofreu e lutou. Se fosse ucraniano, CR7 ia combater? Eu ia combater? Teríamos essa coragem? Verdade ou pesadelo...
O presidente do Brasil diz, pela sua boca, que rolou um clima, com meninas de 14 anos. Oi? Já tinha um currículo avantajado: não é coveiro, Covid é uma gripezinha, vacina faz o ser humano virar jacaré, imita pessoas com falta de ar, rindo, não consegue ser gentil com mulheres, principalmente as que pensam diferente e têm autonomia de pensamento e de opinião, etc, etc... Oi? Pesadelo, pesadelo, termina, termina...
Enrolada em pesadelos, em pensamentos tóxicos, vou até ao jardim e, subitamente, o mundo se transforma. A Sabiá, a querida Sabiá que faz ninho na varanda e que desapareceu, meses e meses, depois dos macaquinhos terem roubado seus filhotes do ninho, bem na sua frente, voltou. Voltou gente! Voltou! Estava com um raminho verde na boca, olhando a gente, pousada no galho da Pitangueira. Passado umas horas, com o calor forte que está, o galho já estava no lugar da construção do ninho e seco. É Sabiá, contigo não tem pesadelos de ego, como muito bem fala, Sandro Norton, contigo é sonho e busca, sonho e concretização. Linda Sabiá, que bom que voltaste a casa! Quem sabe a gente festeja junto, um novo Brasil, daqui a uma semana...
Ana Santos, professora, jornalista
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