Conto “SOBRE CASAS, SEUS ESPÍRITOS E DONOS EXAUSTOS”
Ela já nem conseguia se mover, de tão cansada. Como uma obra – nem era reforma, só uma obra mesmo – poderia deixar uma casa habitada tão suja?
Ao mesmo tempo, pensava que aquela decisão tomada há muito, de ser, com Ana, responsável por cada detalhe, limpeza, plantinha - tinha sido acertada. Era impossível valorizar cada poeira tirada, cada ferrugem tratada, se não fosse através de seus olhos e mãos conjugados.
A casa foi meio que posta de lado desde a pandemia porque tinha medo de respirar. Muitas vezes, andando na rua, chegou a prender o ar passando ao lado das pessoas e depois sentia vergonha. Aconteceu mil vezes. Jamais iria inventar de dar manutenção em nada que não fosse essencial, vital - e a casa “só a chamou” quando um gato lhe quebrou umas telhas, numa semana de chuva daquelas.
Mas agora olhava cada cantinho – mesmo os inacabados – e sentia enorme alegria, com a casa renascendo.
Talvez as casas também tivessem espírito. Energia tinha certeza de que tinham. Mil vezes recebiam pessoas que apenas iam se deixando ficar, conversando, curtindo, sentindo a casa. E elas falavam isso! Aliás, ouvir alguma coisa sobre a energia da casa era até algo comum. “Amei a energia da casa” sempre foi visto como uma coisa a ser reconhecida e não um elogio. Cada pessoa que ali entrava, acabava permitindo que “a casa” a envolvesse com a sua própria energia, abraçando, sentindo a palpitação.
Assim, sentada, morta de cansada, em frente ao computador, pensou mais uma vez na alegria e na gratidão de poder arrumar as coisas ouvindo os passarinhos cantando ou admirando o assobio agudo dos micos.
Sentada, pés pra cima da mesa do PC, lembrou até do dia em que, saindo de casa cedo, topou com uma galinha marronzinha “entalada” na sua grade - e da produção que foi “estimulá-la” a pular, sair de casa e voltar ciscar solta pela rua.
É como se as casas tivessem memórias, casos, histórias de traumas, lágrimas, amizades, saudades e, a cada pequena obra, todas esses detalhes voltassem a nos habitar como quando aconteceram. Reviu Elecktra, a loba, os buracos enormes que cavava, o pé de pimenta do reino que ela destruiu, as flores que nascem todos os dias, a primeira romã e todas as filhas da babosa. Reviu os últimos dias de sua mãe, de sua sogra, as lágrimas que chorou e também as que engoliu, as que viu escorrerem de outros rostos. A casa guardou cada uma dessas marcas e agora sentiu também o seu alívio em virar mais uma página. Algo como suspirar fundo, limpar o rosto e se sentir pronta pra seguir.
Mas agora só conseguia pensar nisso tudo. Seus pés doíam demais para qualquer outra atitude que não fosse viver aquele momento mágico com os pés doloridos, esticados sobre a mesa do PC...
- Ai, ai...
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “Como o banho”
- Papá...
- Sim???
- Já chegamos?
- Acabamos de sair.
- Mas disseste que era uma viagem rápida.
- Disse, sim. E vai ser rápida.
- Mas rápida, de quanto tempo?
- Rápida, tipo o tempo que demora a tomar banho.
- Não entendi. Tu demoras muito a tomar banho, mas a Mãe, que nem tempo tem para tomar banho, é muito rápida.
- Humm. A nossa viagem vai demorar o mesmo tempo que eu demoro a tomar banho, ok? É rápido para uma viagem de carro, mas talvez seja lento para um banho.
O silêncio instalou-se no carro e a viagem continuou. A rua por onde estavam a passar estava cheia de carros. Carros em movimento, carros parados. A determinada altura o carro deles não conseguia passar porque estava um carro de mudanças, descarregando mobília. Toda a gente começou a apitar/buzinar, dentro dos carros. Algumas pessoas baixaram os vidros e começaram a falar alto, a exigir que o carro das mudanças estacionasse melhor para não impedir o trânsito. Mas as pessoas que estavam a descarregar as mobílias nem olhavam, nem falavam com ninguém, tentando fazer o seu trabalho. O povo começou a ficar cada vez mais chateado, os comentários começaram a azedar, a ficar mais agressivos, mais tenebrosos. O Pai, que não queria perder a cabeça, preocupado em dar um bom exemplo ao filho, baixou o vidro do seu carro e perguntou:
- Os senhores vão demorar muito a descarregar? É que estão a atrapalhar toda a gente. Meu filho até já nem fala comigo porque eu disse-lhe que a viagem era rápida, e não está a ser.
- Não seja por isso. Posso falar com seu filho?
- Pode
- Olá...
- Olá...
- Desculpa estarmos a demorar a tua viagem, mas prometo que vai ser rápido.
- Sim, eu sei. Como banho do meu pai. O senhor pode me dizer em que momento estão? Ainda estão a molhar o cabelo e o corpo, ou já estão a tirar o shampoo do cabelo e o sabonete do corpo?
Ana Santos, professora, jornalista
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