Conto “ESTÁGIO”
Hiiiiperativa! Tudo acontecia na vida dela com esse entusiasmo quase louco, de tão otimista.
Ainda mais no estágio. Ainda mais de professora. Ainda mais com crianças pequenas.
Resumindo: ela era “O” entusiasmo(!) – mas sendo hiperativa, poderia ser o início de algo “abundante”, talvez confuso.
Tomou, por isso, todos os cuidados: estava quieta, mesmo estando com vontade de ir ter com os pequenos. Prestava atenção a cada detalhe que a supervisora de estágio apontava, tinha os planos de aula, a ideia, os objetivos e as novidades. Muitas(!).
Respirou para controlar o entusiasmo absurdo e se dedicou ao máximo. Mil brincadeiras, mil conversas, mil paciências. As crianças amaaaaram!
Veio o recreio, a merenda, os suquinhos e toddynhos e biscoitinhos – ela ganhou tantos mimos... merendou mil vezes – cada menino a teve por um momento, mesmo quando já nem precisava estar ali.
Relaxou. Vencera! Estivera impecável!
...
...
O menino veio lhe pedir pra ir fazer xixi e ela logo disse sim.
...
...
Ele não conseguia abrir o fecho éclair – não dava, estava preso em algum lugar e ele logo lhe chamou pra pedir ajuda.
Ela estava tão confiante que a parte atenção absoluta não estava mais tão bem ligada... Empurrou a travinha – nada. De novo e de novo, com mais força e com mais força ainda. Nada. O menino dizia que estava apertado, ela foi fazendo cada vez mais força e - AAAAi! – o menino começou a chorar.
O fato é que o menino não estava de cuequinha e quando ela colocou força total a trava do fecho éclair prendeu o pintinho dele.
Toda a sua vitória sumiu, escafedeu-se, desapareceu. Teve que tirar a travinha com cuidado, mas ainda assim doeu. Ela sabia que tinha doído. Muito.
Quando ele voltou do banheiro, sentaram-se na meio fio da escola.
- Ta doendo muito?
- Ta, tia...
- E se eu te der algumas merendas que guardei, será que você troca a dor por uma coisa gostosa?
- Que tipo de coisa, tia?
- Eu tenho aqui biscoito amanteigado gostoso, umas balas...
- Quero tudo.
- Tudo? Tudinho? A tia não vai ficar com nada?
- É que doeu muito, tia...
Suspirou – ok, vai. – sua culpa aliviou na mesma hora.
- Estágio é fogo...
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto ”Prof”
De cada lugar, guarda na memória uma resma de histórias. Jeitos diferentes, palavras diferentes, nomes dos jogos e das coisas diferentes. Chega a ser engraçado perceber como um país tão pequeno muda tanto. Uns 30 quilómetros e quando a professora diz que vão jogar o “mata”, afinal é o “apanha”, ou o “queima”, ou, ou, ou...
Uns, numa zona, precisam de uma voz mais forte, mais afirmativa, outros ficam apavorados se a professora fala um pouco mais alto. Normalmente, no interior do país, ou nas zonas rurais, costumam ser mais sensíveis, nas grandes cidades, nas zonas mais pobres, mais difíceis, mais cheios de “ginga”.
A pobreza também era uma coisa difícil de engolir. Ver aqueles meninos, um ano inteiro, com a mesma roupa. Cheirarem mal por descuido dos pais, ou por falta de água, água quente, cuidado. Em pleno inverno, com zero graus, um calção e uma t-shirt, pelas 8h da manhã. Ela, cheia de roupa e o corpo gelado e aquelas fofuras, roxas de frio, fazendo tudo o que a Prof dizia, cheias de alegria. Levava sempre alguma comida na sua mochila, mesmo sabendo que não ia comer. Havia sempre alguém que não tinha tomado o pequeno-almoço e que em algum momento da aula iria se sentir mais fraco. Lembra de um menino que sentia dor de barriga quando fazia o que mais amava – jogar futebol. Ficou a saber pela diretora da escola que era fome e fraqueza. Uma época, levava um pão maravilhoso para diabéticos, duas boas fatias com queijo e um iogurte delicioso. Tinha uma menina que começou a “precisar” regularmente de comer alguma coisa na aula. Era emocionante ver aquela fofura se lambuzar no pão com queijo e no iogurte. Um dia, veio a surpresa.
- Professora?
- Sim?
- A senhora é diabética?
- Acho que não. Até hoje de manhã não era. Porquê?
- Vem sempre com este pão que tem escrito no saco que é para diabéticos...
- Ah, ok. Mas olha, não sou não. Compro esse pão porque é uma delícia. Mesmo não sendo diabética, pode-se comprar comida para diabéticos. É gostoso não é?
Xiii, lembrou de outra. Numa escola do interior teve um menino que não queria acreditar que ela, a professora, tinha 30 anos. Estavam alguns alunos a fazer perguntas no final da última aula do ano e ele começou a ficar furioso. Dizia que a professora estava a mentir.
- Rui, isso não se diz, Rui. Estou te dizendo que tenho 30 anos. Porque não acreditas?
- Professora, não é possível.
- Queres que vá buscar um documento?
- Quero!
- Sério? Eu vou buscar, mas fico triste por não acreditares em mim.
Rui ficou calado, muito chateado e uma conversa que era sempre uma alegria, virou um momento estranho. A professora foi buscar um documento dela e mostrou aos alunos. Todos viram. Quando o Rui olhou o documento, olhou, olhou, olhou. Entregou o documento à professora e ficou calado. Todos acharam tão estranho. Olharam para a professora aguardando o que ela ia fazer.
- Rui? – diz a professora – não dizes nada?
- Estou muito confuso.
- Porquê?
- Porque os meus pais também têm 30 anos e já não têm nenhum dente, como a professora tem 30 anos e tem os dentes todos? Não consigo acreditar que tem 30 anos.
Ana Santos, professora, jornalista
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