“Existirá algum dia a consciência geral de que de que esses ‘dias de consciência’ x, y ou z precisam acabar? Acabar por inanição das ações discriminatórias, dessa forma de olhar ‘completamente aleijada’ de ideias”.
Escrever para jornal era sempre difícil nessas horas. Não era possível falar do que lhe parecia estupidamente óbvio e no mesmo dia ter que dividir espaço de página – e normalmente perder – para a batida policial que matou pobres favelados pretos. Não como 3 adjetivos separados, mas como uma coisa só, um destino único do qual não se conseguia fugir.
“A polícia negra, como negros são os 80% das pessoas da Bahia, precisa parar de ver na cor ‘essa paródia sem graça de uma pseudo vocação para o crime’. Isso sim é crime. As blitz de revista de suspeitos que de maneira estranha sempre têm a mesma cor e o mesmo extrato social. Isso já tem nome – APOROFOBIA – horror aos pobres”.
A simples ideia de perder a pouca projeção social que tinha no Brasil, por não ter indicação de ninguém, causava horror. Nela também. Era muito cruel ser pobre no Brasil.
“Cruz credo. Você se vê diante de uma doença, de uma praga, uma pandemia, por exemplo e perde o pouco status que passou a vida inteira cultivando como uma planta rara”.
Na página posterior, lá estava o noticiário internacional – Europa lenhadíssima com a volta da COVID – como ela ia transformar isso em notícia no dia da consciência negra, com tanto a dizer ainda no Brasil? Como tirar mais um pouco de esperança? Já não bastava você saber que o noticiário negro tinha sempre mais mortos, mais perseguidos?
“Deixa eu ver como posso dar mais uma notícia ruim... ela pensou.
“Governador da Bahia chama todos à razão ao afirmar que está receoso de liberar o carnaval. Existe beleza maior do que se ter a coragem de dizer que sente medo? E de fazer o que é certo?” – ela pensa.
No dia da consciência negra, talvez o ideal seja pedir à todos, de todas as raças, um pouco mais de consciência. A consciência trará o sentimento de orgulho, o desejo de vencer e a verdade por trás das dificuldades que as pessoas sentem de ultrapassar as enormes barreiras “dos amigos, parentes, coligados – FAVORECIDOS” – dos aristocratas de sempre. Ricos.
APOROFOBIA. Tinha certeza de que poucos saberiam que essa velha praga sem nome, tinha sido batizada afinal. APOROFOBIA. Quando todos teriam o direito real de transitarem livremente pelas ruas, pelo mundo? APOROFOBIA. Quando um mundo só, para todos os vivos do mundo?
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Está na hora de dormir. Ana já deu beijos nos seus pais, em cada um dos seus irmãos. Sobe as escadas para o andar de cima da casa e dirige-se para o seu quarto. Prepara-se para dormir. Faz xixi. Toma uma boa banhoca. Hoje com água bem quente, por isso, basta rodar o botão. Lava os dentes, com a escova nova. Seu pai finalmente aceitou comprar a sua escova preferida. Desliga a luz do seu banheiro ao sair, porque a luz acende e apaga com sensor de movimento. Veste o pijama. Novo. Cheiroso. Deita na cama demasiado grande para si, cheia de almofadas. Hoje não vai ligar a televisão nem vai para o computador. Nem tão pouco vai navegar no seu iphone. Hoje, antes de dormir, vai tentar fazer uma coisa diferente. Vai ler um livro. Sem ninguém saber. Uma experiência. Sempre ouviu seus avós e seus pais falando que liam livros e ela quer saber como é. Mas antes precisa dar de comer aos seus peixinhos. O enorme aquário que ilumina seu quarto parece gritar, tentando avisá-la. Ana adormece lendo a história da “Branca de neve e os sete anões”.
Está na hora de uma criança dormir, penso eu. Não sei que horário é o escolhido e decidido pela família de Ayo. Eu não sei se ela vive com seus pais, nem irmãos. Nem se vivem mais pessoas na sua casa. Nem se tem casa. E se tem casa, como funciona. Se ela tem um quarto só para si. Se tem televisão no quarto, na casa. Se comeu antes de dormir. Se tem água em casa para tomar um banho. Se tem escova e pasta de dentes e água para lavar os dentes. Se tem cama só para si. Se tem pijama, nem que seja um pijama que seus irmãos já usaram. O que ela fala, faz, pensa antes de deitar? Como se faz no modo de ser da sua família? Eu não sei. Eu não sei terminar a história porque nada sei sobre vidas que vivem diferente da Europa ou dos EUA. Penso e penso e imagino, mas nada vem. Então decidi que não vou inventar. A história vai aqui terminar porque eu não sei continuar. Mas quero saber, quero aprender. Como é? Como se faz? Como se vive sem ser dessa forma? Não é possível que as crianças só tenham esta forma. Ajuda por favor...
Ana Santos, professora, jornalista
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