Conto “O MERCADO DE HOMENS OU OS HOMENS NO MERCADO”
O mercado tinha uma fila pequena e, no caixa ao lado, três homens falavam aquelas conversas de homem.
- Deixe de ser gay, rapaz!! Nem venha com essa!
Blá blá blá...
- Mulher comigo “pira”, rapaz! To falando sério! E eu vou “dar mole” pra elas?
- Se eu comi? Mas, rapaz...
Blá, blá blá...
- Tomei todas! Que festa... também, um 0800 daquele!
Na outra fila quatro desconhecidas. Mulheres. Desconhecidas. Uma, no caixa. Outra pagando, duas na fila. E elas ficaram ali, “assistindo” aquela conversa que, de tão repetida para seus ouvidos, eram vistas como algo infantis.
Num determinado momento, uma delas, olhando para a que estava no caixa, comenta:
- Por que os homens se encontram só pra falarem besteira? Nada se aproveita... faltou falar de futebol pra ganharem a coroa de repetidores inveterados...
Não deu outra:
- E o seu Vitória? Vai descer até aonde? O Bahia – Bora Baeeeea! – chegou na primeirona rapidinho!
- Só chegou na primeirona porque desceu antes, né pai?
Blá, blá blá...
As mulheres se entreolharam de novo: Não faltava mais nada.
E ali, na fila, um leve sorriso no canto do lábio, em silêncio cúmplice, elas se esperaram. As quatro. Como não aconteceu nenhum milagre, o papo dos homens não mudou nada. Era só aquilo, mesmo: alguém fazendo aquele bullyingzinho habitual, mulher, homem “se sentindo e se mostrando”, álcool, sexo, futebol.
- Se resumem fácil, fácil...
Pagaram, se despediram e se foram. Que pena. Mas era só aquilo mesmo, a maior parte do tempo...
- O que nós deixamos de ensinar a eles, hein?
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “Olha ela, cheia de graça!”
Mulher. Ser mulher. Tem umas que fazem coisas belas, visíveis, contundentes. Conseguem chegar e se manter em lugares superiores, de liderança, de poder. Super! Muitas vezes optam por aprender os jogos masculinos para se enquadrarem na “competição” de viver, de empreender. Vão pelo óbvio, pelo conhecido. Misturam com isso roupas extremamente femininas, clássicas, sedutoras até. Fica por vezes a sensação que é dessa forma que querem dizer que para além de assumirem “jogos” masculinos no trabalho e nas lideranças, também são mulheres, mulherões, gatas. Para mim fica estranho porque fico com a sensação que tentam se afirmar com os instrumentos de “ação” dos homens. Fica tipo, você quer desarmar o mundo de pistola na mão. Por isso a mulher de que vos falo se torna ainda mais poderosa, mais incrível, mais especial. Foi e é muito especial na vida de muitas pessoas – homens e mulheres, porque abriu caminho para a possibilidade de muitos comportamentos para as mulheres, que eram só admitidos aos homens e abriu caminho para comportamentos de adolescentes, homens e mulheres, que nenhum homem ousou enfrentar – e muitos desses homens usufruíram dessas mesmas rupturas. Enfrentava os homens desde cedo para poder ter o direito de sair à noite, ir a um espetáculo cultural, ter a liberdade de escolher o seu Deus, questionar as “liberdades” dos homens casados e a “limitada movimentação” das mulheres casadas, entre outros imensos impedimentos. Era capaz de ficar horas a discutir e só parava quando conseguia. Uma enorme capacidade de oratória, de argumentação, de sentido de justiça. Mas não era um conseguir de enganar, de ser esperta. Era um conseguir justiceiro, profundo, puro, de bravura. E, se conseguia essa aceitação mas só vinha para ela, a discussão começava de novo porque ela só admitia conseguir liberdades que fossem também para os outros – homens e mulheres, jovens ou mais jovens. Os caminhos que abriu foram muitos, os sonhos que ajudou a realizar foram monstruosos, as vidas que salvou não têm fim. Pouco visível mas de uma importância soberba, brutal, mundial.
Era uma vez a Ana mais incrível que já conheci. Um misto de timidez, vergonha, firmeza e coragem. Menina linda, um corpo de princesa, uma cara de boneca. Um sorriso aberto de par em par, cheio de doçura e carinho. Lenta nos movimentos, discreta nos viveres. Disponível e sensível às necessidades de todos, Ana sempre esqueceu dela.
Em silêncio, na penumbra, move montanhas, mas não a coloquem em lugares iluminados porque não quer, não gosta e recusa-se a fazer seja o que for para aplausos. Igual à sua mãe. Ana vê tudo, vê as necessidades, vê as mágoas, vê e sente os pedidos, e resolve tudo com amor, alegria e talento. Ou, tudo o que o seu dinheiro permite, tudo o que a sua energia permite, tudo o que o mundo permite. Ana é uma “máquina” muito importante no prédio e na rua onde vive, no lugar e cidade onde trabalha. Ana ajuda o mundo a avançar, ajuda na esperança das pessoas, ajuda na perfeição com que atua, ajuda na força que tem. Mas, eu sempre me pergunto...e se ela precisar de ajuda? Quem sabe, pode e consegue ajuda-la? E ajuda? Porque não são muitas as pessoas capazes de ser como Ana. E quando Ana precisa de ajuda que só ela sabe ajudar, temo que fique sem ela – a ajuda, o apoio, a proteção, a vida. E como ela só pensa em ajudar os outros o perigo aumenta...
Quantas Ana’s como ela existem por aí... Um país também é e será a forma como cuida, ouve, ajuda, protege, as Anas como a Ana. Um país é um país quando aproveita o talento destas Anas silenciosas, mas tão valiosas! Um país nada é sem estas Anas...
Ana Santos, professora, jornalista
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