Conto “RELACIONAMENTO TÓXICO”
Odiavam-se. Nem saberiam dizer quando o amor se transformou naquele desejo irresistível de fazerem mal um ao outro, mas... foi assim.
Tinham filhos, todos hipermedicalizados. Ansiedade, pânico, vicio em telas, explosões de raiva - tudo fazia parte do mesmo contexto. Tóxico, claro. Como tudo ao redor deles.
Quando falava dela, as palavras – abruptas e grosseiras – teimavam em pular-lhe da boca. Tinha um ar jovial sempre, mas naquele dia, não. Naquele dia foram apenas lembranças que se misturaram, arderam e foram expelidas como furúnculos purulentos. Verbais. Mas purulentos.
O médico repetia que essa nova geração tinha sido “tentada pelo demônio”, através dos celulares. Ninguém se mexe! Ninguém fala mais, mesmo sabendo que nascemos falantes sociais. Ninguém quer se expor, viver em grupo, ser aquele que aprende, tanto quanto aquele que ensina – situações de inferioridade, competitividade extrema, cansaço de tanta atividade, ansiedade. Viver era mesmo aquilo? Mas antigamente todos moravam perto uns dos outros, as famílias eram maiores, as mães ajudavam os filhos a serem pais, havia os almoços de domingo, a carne assada com batatas coradas... Onde haviam deixado tudo aquilo?
Seus filhos já tinham voltado para a casa materna. Fim de férias de final de ano. Não sabia bem quando os poderia ver de novo porque viviam tão longe uns dos outros...
Depressão e solidão, em seu caso, eram quase como um laudo de cura. Tinha caído, brigado até a última palavra, até a última gota de resistência. Como com os políticos e suas estranhas políticas, sentia-se roubado até o talo. Achava que tinha se recuperado, mas... não. Afinal, vendo os fogos do Reveillon, na vizinhança, chegou à conclusão que o final de um relacionamento como aquele – TÓXICO – era um amplo e infinito vazio, povoado de filhos que se escondiam ao esconder de todos o que eram, o que sentiam.
- Deus, me passe as palavras. Você não fez o discurso: "No princípio, era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por Ele, e sem Ele nada do que foi feito se fez"? Me passe as palavras, estou sem sentimentos!
As palavras lhe saíam pela boca, secas e áridas, mas – no canto dos olhos, surgiram lágrimas, lágrimas de sentimentos represados, engolidos, não falados. Era talvez Deus, lhe devolvendo a alma, gota a gota...
"O amor é paciente, o amor é bondoso. Não inveja, não se vangloria, não se orgulha. Não maltrata, não procura seus interesses, não se ira facilmente, não guarda rancor. O amor não se alegra com a injustiça, mas se alegra com a verdade". 1 Coríntios 13:4-7
- O amor há de curar porque tudo no amor cura, tudo no amor cura, repetia...
Tóxico.
Tudo ainda era veneno em seu corpo.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “Mesmo que falem e pensem”
Estava ouvindo aquele senhor, sem saber o que responder.
Nesse momento recordei aquele dia em que estava com um grupo de amigos e conhecidos jogando jogos sociais e uma das conhecidas, com sorriso de escárnio e alto e em bom som, disse que eu nunca iria morar fora de Portugal. Disse-o como se dissesse que eu não era capaz de tal feito, como se fosse proibido para mim, como se isso fosse só para melhores do que eu, como se isso determinasse se temos valor ou não – e eu não teria nenhum aos seus olhos. E continuou explicando a sua teoria científica sobre a minha pessoa – que conhecia do que os outros diziam ou do que via já que nunca tivemos nenhuma conversa que se pudesse chamar de conversa. Disse tudo aquilo com tanta certeza, que eu me pergunto se suas descobertas científicas também são encontradas assim, a ver se acerta. Ou se educa seus filhos assim, atirando preconceitos ao vento. E me pergunto se os outros que ouviram e calaram, pensam o mesmo ou se apenas não se quiseram incomodar. As ações mais comuns dos comuns mortais - calar perante as atrocidades da vida.
Como as pessoas sabem tanto dos outros? Têm tantas certezas? Sabem melhor do que os outros, como esses mesmos outros devem viver a sua vida? E quando a vida te dá um sopetão e aí vais tu para outro país? Precisas pedir autorização a essa senhora, entendida no assunto - que és tu e a tua vida - para saber se podes ir?
Como quando és pequenina e não és escolhida para o time de futebol por seres mulher? Ou não te deixam bordar porque és homem? Ou consideram que não vales nada por não saberes utilizar o Metrô, apenas porque vens dum vilarejo onde apenas se anda a pé? Ou quando consegues alcançar coisas enormes mas todos consideram que foi sorte...até que passam décadas e ninguém consegue fazer o mesmo?
Acordo destes pensamentos porque o senhor, permanece na minha frente, aguardando a minha resposta. Ouço a pergunta que repete mais uma vez: “desde que ano vive aqui no Brasil, dona Ana?” Tenho vontade de lhe dizer que não vivo no Brasil, que é um sonho dele, sonho meu, porque uma mulher uma vez me disse que eu nunca faria algo assim.
Somos o que somos, o que descobrimos a cada dia, ou somos apenas o que os outros acham ou querem que sejamos? Temos forças suficientes para fazer o que queremos? Para decidir bem? A neurocientista Wendy Suzuki diz que quanto mais exercício físico fizermos, melhores decisões tomaremos. Talvez eu tenha de continuar a fazer exercício para continuar a decidir bem, para continuar a fugir desses tiros que me tentam acertar e impedir de me desenvolver. Não sei se vou viver onde nasci ou do outro lado do mundo. Isso não é importante porque isso não me define.
- Senhor Edor, vivo aqui no Brasil há onze anos.
- Só, dona Ana? Parece que nasceu aqui...
- Acha?
- Acho.
Dei uma sonora gargalhada.
- Onde está a piada dona Ana?
- Nada não senhor Edor. Lembrei que uma mulher um dia disse que eu nunca sairia do meu país, como se fosse algo mau, algo que acho que queria dizer que eu era incapaz. E agora o senhor diz que eu pareço ter nascido aqui. Engraçada a vida né senhor Edor?
- Nem me fale dona Ana. Sabe que eu sempre quis ser engenheiro eletrotécnico mas meus irmãos passaram a vida inteira dizendo que eu não prestava para nada que eu nem quis continuar a estudar. Tudo porque um dia não soube explicar aos meus pais porque avariou a bomba de água lá de casa. Isso me marcou muito. Como vê aqui estou nesta lojinha, vendendo jornais e consertando máquinas. Sei fazer tudo e ensino os engenheiros que aqui entram. Mas nunca me estimulei a ir em frente nos estudos, me formar em engenharia.
- O senhor ainda podia estudar. Ainda é jovem. Para mim mesmo que nunca estude, será sempre o que sabe mais do que todos na cidade, sejam engenheiros, físicos ou pasteleiros. E quem sabe seus filhos podem estudar engenharia também.
- Nunca quis ter filhos. Como ter filhos, sendo alguém desprezível até para meus irmãos? Como olharia para meus filhos depois deles ouvirem os comentários de meus irmãos, que ainda hoje os repetem por todo o lado.
- Confesso que já tinha ouvido algumas vezes um dos seus irmãos mais velhos a dizer umas baboseiras quando bebe um pouco mais. Mas nunca liguei nem considerei verdadeiro.
- Mas nem todas as pessoas são como a senhora Ana.
- Nem todas as pessoas são como o senhor Edor.
Ana Santos, professora, jornalista
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