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2 Contos para Dom & Bruno


Conto “EMPATIA TAMBÉM É VERGONHA”

Cada dia, ela olhava a TV e seu peito apertava mais – já não bastassem as mulheres serem violentadas por palavras e ações e termos aquele homem no poder que parecia endossar tudo. Mais do endossar: ele parecia apreciar justificar, explicar, fazer-se presente, mas nunca no lugar das vítimas.

Sempre nos parece que aquele lugar que estamos, portanto, é o nosso fundo do poço. Mas não – o Brasil já nem lhe parecia mais estar num poço – ou mesmo em algum fundo que não fosse imenso como um desfiladeiro montanhoso, estéril e terrível, que não parava de desmoronar.

Bem, mas vinha logo ali seu aniversário e aquele mal estar ia acabar.

TV ligada, após estar diante do computador o dia inteiro. Sua vida era essa. Portanto, assim que foi divulgado, soube que sumiram. Os dois. E logo ali, seu coração apertou. Defensores da Amazônia, amigos dos indígenas – com certeza eram perseguidos. Ser bom no Brasil era uma tarefa de gigante, pensava. Ser defensor de um conceito de não ocupação, não devastação, não exploração, era ser antagônico a todas as velharias absurdas que cercaram a história do Brasil...

- Pra vaca comer, o Brasil está ficando sem comida, gente! Que espécie de burrice governista é essa? Queima tudo, põe o pasto pra vaca, enquanto a gente fica sem direito ao bife e a nada!

Os pensamentos lhe rondavam a mente, mas a agressividade dos homens cerceava respostas objetivas.

- Afinal, os homens acham que são mesmo quem? – pensava, pensava...

Os dias se passavam, seu aniversário passou e as expectativas só pioravam: pescadores que lavam o dinheiro de narcotraficantes os mandaram matar – jornalista e indigenista.

- Não tem pronunciamento do governo? Então ele tira o Estado de todos os serviços onde deveria estar e a gente que se vire! Cadê os militares? Ahn? Esperando um papel?

A ansiedade aumentava: - Eles querem um convite pra irem defender o País? Então militar serve pra ficar sentado na cadeira esperando alguém assinar um papel pedindo que eles vejam o que deveriam estar lá monitorando diariamente? Agindo? E nós os pagamos para esperar? O papel?

A família não tem esperança de vê-los com vida. Querem justiça. Palavra difícil essa, no Brasil – justiça. Ser um bom cidadão é muito difícil porque ou você está ao lado dos puxa-sacos que se auto protegem ou você está sozinho. Sozinho numa mata fechada, infestada de bandidos que estão ali porque o Estado brasileiro não quer se ocupar com isso. Não quer se ocupar de nós, das nossas fronteiras, da nossa saúde, educação, segurança, não quer nos dar esperança. Quer se dar bem, apenas.

Indígenas tomam a frente das buscas e são eles e a pressão internacional que fazem com que os traseiros lentamente se levantem das cadeiras. Sem desculpas, sem delongas. Eles estão mortos.

Mas não mortos apenas. Mais brutalmente do que Tiradentes - que afinal vivia na primitiva idade média - foram mortos, esquartejados, queimados e seus restos enterrados no meio da selva.

Nem assim houve empatia. Interesses eleitorais são mais importantes. Os dois não foram apontados como heróis, as nossas bandeiras não ficaram a meio pau, não houve entrega de medalhas para as famílias e o pior – ninguém sabe, com todas a honestidade dos olhos postos na tela da TV – se eles terão justiça e se os indígenas pararão de ser trucidados. Mas nosso medo – e o de milhões, talvez centenas de milhões – é que sejam abandonados na morte, tanto quanto foram abandonados em vida. Pelo governo.

Sua vergonha a atacou como um raio, ao ponto de não conseguir pensar no assunto sem chorar, ao ponto de gritar com um homem “maluco tipo super macho”, no mercado. Ao ponto de jurar que os heróis não podem mais morrer em vão no Brasil.

Olhou fixamente para a tela da TV e o viu, nela. As palavras apenas pularam de sua boca, olhando-o frente a frente:

- Antes que a Amazônia acabe, você sai. E todos os espíritos estarão à sua espera, com os raios da justiça nas mãos. Dom, Bruno, os heróis agem como vocês. Heróis são como vocês. Heróis!

Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV


Conto "outro lugar"

Estou de novo pensando na mesma coisa. E de novo sem resposta. Puxa...tenho tantas perguntas sem resposta, mas esta talvez seja a mais estranha delas. A que mais me incomoda também. Como é que são afinal as pessoas? Desde menina me ensinaram que as pessoas são boas, que as devemos tratar bem e respeitar suas formas de ser e suas opiniões, mas de que vale isso? Desde menina me ensinaram a ser boa pessoa, mas de que vale isso?


Estou a segundos de morrer e queria dizer a todos os que vão continuar, ainda, vivos, muitas coisas. Acho que já não vai dar tempo, acho que já não terei esse espaço. Não quero acreditar que estes homens, com quem me preocupei por tanto tempo, que tentei ensinar uma forma mais justa, saudável e comunitária de viver, que tentei mostrar as preocupações com o futuro deste lugar e ajuda-los a serem mais felizes, não encontram mais nenhuma solução dentro de si do que a solução de me matar. Não só de me matar, mas de me matar de uma forma que me faça desaparecer e, dessa forma, possam evitar ser punidos. Eles parecem gente, mas eles são gente?


Estou de mãos atadas, na minha mente. Vejo o que fazem comigo, sinto de uma forma diferente, mas nada posso fazer para impedir. Julgo estar noutro espaço sideral. Sofro pelo que percebo, pelo que não poderei mais fazer, sofro pelos que deixo, sofro por estar em frente a seres que parecem humanos, mas são outra coisa. Gostava de avisar os que ficam e que tentam, como eu, resolver problemas. Gostava de estar, uma vez mais com os que amo. Mas neste lugar tão longínquo, junto destas pessoas tão sem normas, sem travões e sem preocupações humanas, acho que não vou conseguir mais nada senão seguir pelo caminho que me surgiu.


Vim aqui para ajudar. Queria tanto ajudar... Mas fui percebendo que isso não é bem recebido. Fui tendo problemas, cada vez mais problemas. Cada vez mais pessoas foram ficando desconfiadas comigo, sua forma de falar, foi se tornando cada vez mais seca, grosseira, agressiva, ameaçadora. Fui tendo cada vez mais cuidados. Fui sendo cada vez mais maltratado. Fui percebendo que quem eu queria ajudar, não queria ajuda. Mas, porque as pessoas recusam ajuda quando precisam? E, porque além disso, elas ainda me perseguem? E, além disso, me querem matar? Eu estou enganado? As pessoas afinal não são boas e a educação que recebi está errada? Por onde vou, por onde caminho? Já não tenho tempo nesta vida para procurar as respostas.


Meu corpo já não existe. Existo agora num outro “espaço” e num outro tempo. Preciso aprender a me comunicar. Tenho ainda muito a fazer...


O que farão os que ficam? O que mudará?

Ana Santos, professora, jornalista

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