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2 Contos: “O TARADO, O CRIME, O DESVIO E O RIDÍCULO” e “Um ponto de luz”


Rover Thomas

Conto “O TARADO, O CRIME, O DESVIO E O RIDÍCULO”

“Estuprada por 72 homens hétero escolhidos pelo próprio marido (que assistia a tudo), resolve falar da sua experiência” – estava lá online, com letras garrafais. 

Lá estávamos nós de novo nas manchetes dos jornais da pior maneira possível. A coitada era drogada e estuprada sempre que o marido queria ”se divertir”.

Estaria errada ou era necessário e urgente discutir como os homens hétero estavam sendo criados? Uma única mulher – estuprada por quase 100 homens avalizados pelo marido.

- Isso precisaria existir? Quem, que espécie de pessoa pode se divertir ao estuprar uma mulher inconsciente? Que prazer físico pode sentir uma pessoa que faz isso? E se faz isso e sente prazer, ninguém fala do assunto com a pessoa? Olha, você é um estuprador, um tarado, um doente! Esse véu de silêncio sufocante vem de onde, afinal?

Pra piorar, no mesmo dia, um dos seus ministros de Estado favoritos foi acusado de assédio, gente... o silêncio que estava aos berros foi o de outra ministra que ela também adorava.

- Se ninguém falar sobre a maneira como os homens estão sendo educados, qualquer dia esses tarados vão nos atacar no meio da rua, à luz do dia! O governo acha que “resolve o problema”, dando o vagão rosa para as vítimas e o trem inteiro para os bandidos...

Como estava na rodoviária na hora do rush, não demorou para ouvir uma daquelas “gracinhas” de homem. Por acaso ela tinha um sorvete de casquinha na mão. Chocolate com flocos. Tinha acabado de comprar.

- Te chupava toda...

Parou.

Voltou.

Olhou na cara do tarado.

Encarou.

- Não entendi. Você ta me chamando pra quê, mesmo?

Sentindo aquele desejo dentro do seu coração, se aproximou mais do tarado. Olhos nos olhos. Ele sorria o sorriso do tarado que acha que vai se dar bem. Daquele tipo que “pensa que está pensando”... Do tipo que “pensa que sabe pensar”... Não deu outra: Ela “fincou” o seu sorvete de casquinha na testa dele, como um chifre de unicórnio, um rinoceronte do mal.

- Toma seu tarado asqueroso! Vai chupar a sua mãe!

Saiu rebolando e pegou seu ônibus gloriosa.

- Por todas nós que estamos exaustas desse abuso, seu tosco, nojento, tarado!

Por onde passava era aplaudida pela mulherada. Apenas a ideia de que um homem tinha visto o ridículo a que nos expunha a todas, era uma vitória.

- Unicórnio do mal!

Mas a dor, a dor que os homens infligiam precisava acabar. Do Talibã ao Brasil. Aquilo não poderia mais ser visto como normal, como um traço masculino.

- Doente...

Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV

 

Conto “Um ponto de luz”

A vida como eu achava que era. A vida como ela é. Como é a vida afinal?

Quando era menina, lembro que existia uma casa perto da dos meus avós, onde viviam algumas mulheres – não me lembro quantas eram. Jovens, alegres, falando alto, sorrindo, felizes e sempre com as janelas abertas. Eu sentia minha energia mudar quando passava por ali. Era tudo diferente, tudo extraordinariamente novo, fresco. No entanto, os mais velhos, principalmente os homens casados, não falavam bem delas, os comentários eram sempre carregados de censura, de indiretas, de caras tortas e de avisos para não passar por ali, não olhar para elas, insinuando falta de cumprimento de regras, de forma bem vaga. As outras mulheres, ficavam caladas quando ouviam estes comentários e eu não entendia o que isso queria dizer. Naquela idade, de menina, pensava que essas mulheres concordavam, mas na adolescência comecei a achar que os silêncios delas eram mais obediência aos homens ou fuga de problemas. Na idade adulta me atingiu o choque de entender que tudo estava errado. Aquelas mulheres eram uma fofas, livres, donas do seu destino, levando suas vidas tranquilamente, vitimas do machismo por parte dos homens e da submissão das outras mulheres. E isso foi se repetindo pela minha vida afora e eu me apercebendo aos poucos deste machismo estrutural, pintado de sociedade correta, educada, equilibrada – como quando aquela senhora angolana, divorciada, e seus dois filhos surgiram na povoação cheios de novidades e hábitos totalmente diferentes; como quando escolhi o primeiro namorado e meus amigos e primos lançavam comentários de censura – chegando mesmo a dizer que eu merecia melhor. Melhor? Quem sabe o que é melhor para mim? Vocês? Depois, quando namorei com um cara, por apenas dois meses, porque começou a tentar controlar o que eu gastava, a vigiar meus movimentos bancários. Como quando um tio comentou que eu tinha um carro demasiado grande para uma mulher só. Como quando um primo traiu minha confiança com algo bem grave e a família ficou do lado dele – até hoje. Como quando eu nunca podia sair mais cedo das reuniões de trabalho, na escola onde trabalhei, uns anos atrás – se o fizesse teria falta - para ir buscar minha sobrinha na escola e a levar nas aulas de ginástica e meus colegas, homens, saíam mais cedo para ir ver jogos de futebol, buscar o carro, passear, fazer o jantar, o que quisessem. Ainda riam por causa da situação. Enfim. Foram tantas coisas. Têm sido tantas coisas. Lembrei de mais uma em que um ex-aluno e ex-atleta, num cargo de poder, numa reunião, lança esta “maravilha”: “eu não sei como é com vocês, mas têm a certeza que querem marcar isso e depois ter de explicar à vossa mulher que vão atrasar o jantar duas vezes por semana? Eu não quero ter problemas com a mulher.” Me dá calafrios lembrar e até escrever estas frases.

O que é uma mulher para um homem? O que significa? É o meio de ter filhos? É o fardo que carregam para serem respeitados socialmente? É um objeto sexual gratuito e de acesso livre? Não tem valor o que fala? O que pensa? O que quer?

A palavra de uma mulher não tem valor? Se forem 14 a dizer a mesma coisa, talvez? E se forem 100 já acreditam?

A vida como eu achava que era. A vida como ela é. Que só muda se eu a mudar. Em honra dessas mulheres que conheci, que mudavam o ambiente, que quebravam o padrão, que não receavam os comentários.

Vou sempre abrir minhas janelas, sorrir, dizer, fazer. Vou sempre ser, como as mulheres daquela janela, um ponto de luz.

Ana Santos, professora, jornalista

 

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