Conto “O PITCHING DO PAÍS DO ESPELHO”
Ela costumava se preparar para esses momentos de pitching com cuidado e eficiência. Sabia o que fazer e como se conduzir com habilidade. Ensinava isso.
Só que dessa vez... bem, dessa vez foi diferente.
...
Chegou como sempre um pouco antes. Poucos minutos. Apenas para ter certeza de que o vídeo e o microfone estavam funcionais. Havia separado sob forma de texto, tudo o que lhe poderia ser perguntado. Tudo mesmo. Guardava como lição prática que a escrita era um armário onde se deve guardar ideias organizadas e pensamentos criativos para, ao ler, tirá-los da caixinha.
Sala de espera meio cheia, pessoas simpáticas, antipáticas, silenciosas e observadoras. Deu a hora, foi transferida para a sala de reunião e, a partir daí, ela entrou num daqueles momentos Alice no País do Espelho porque aconteceu tudo ao contrário.
Tinha vinte minutos para falar e o que costuma acontecer é o silêncio que cabe ao proponente quebrar com suas ideias. Mas não foi assim. Quem deveria estar ali em silêncio, pediu a palavra e se apresentou, detalhando que tinha visto as ideias que tínhamos apresentado e como as queria utilizar. Falou que gostaria de nos ter como parte da engrenagem que ele já tinha e seguiu falando, explicando.
Incrível. Tudo o que ele falava, eu tinha vivido muitos anos atrás, mas sem teoria nenhuma, como visitante, dançante, confidente e estudante. Quando ele me deu a palavra, estar entre dois tempos me amoleceu, minha voz denunciou a lágrima que foi segurada há tempo, mas era a tarde – ele viu que a minha voz tinha tremido.
Expliquei estar, ser ligada totalmente - emocional e intelectualmente à comunicação humana – profissional ou não. Falei do que pretendia fazer, minha proposta, o que tinha pensado e o que o apagão de São Paulo tinha atrapalhado. Os vinte minutos viraram trinta muito rápido, telefones, mails, contatos, alegrias. Comunicação era fogo: quando o sistema se armava e entrava em funcionamento, o tempo sempre parecia passar rápido demais – tão rápido que ninguém o via passar. Mas que importância tinha o tempo nessas horas?
Afinal, o pitiching foi meu ou dele? – me perguntei várias vezes. Não importava. O estado de troca estava ali, estabelecido, no lugar mais inusual do mundo: um pitching...
Não sei de nada, não sei se vai dar certo, se vamos conseguir nos unir, se vamos agir como um grupo, se seremos fieis e honestos um com o outro, se nossas intenções de ajudar a humanidade virarão uma parceria de sucesso. Mas não importa. Raramente, hoje em dia, a comunicação cria a mágica do diálogo sem fronteiras, a alegria de ter palavras para trocar com alguém, ideias que se complementam. Nada de impor pensamentos, mas perceber que alguém começa o que o outro está complementando em seguida. Nessas horas, a raça humana é linda e com a nossa humanidade podemos consertar tudo, refazer tudo.
Mãos à obra.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “A hora das surpresas”
Tinha uma coisa atravessada no seu coração com telefonemas fora de hora. Em menina, quando isso acontecia, normalmente tarde na noite, os adultos mostravam uns olhos arregalados e umas caras pálidas de imediato. Depois ninguém se apressava para atender. E depois aquela conversa tão diferente:
- Alô? Quem fala?
Do outro lado o tio apresenta-se.
- Olá tio. Está tudo bem?
O tio diz que infelizmente não e informa a morte do familiar.
- Meu Deus, como isso aconteceu?
Explicação curta do sucedido.
- Como lamentamos. Os nossos pêsames. Já sabe quando é e onde é o velório? E o enterro?
Informações passadas.
- Obrigada pelo telefonema. Até amanhã.
As caras pálidas olhando e aguardando as informações: quando aconteceu, como aconteceu, quem estava junto.
Em adolescente, os telefonemas, demasiado cedo, também traziam as mesmas notícias desagradáveis. Se alguém ligasse antes das 9h, já sabia que o que vinha não era nada bom. Então se ligassem 6h da manhã, 7h da manhã, em época de inverno, era certinho e direitinho que lá vinha mais um velório e mais um enterro.
Em adulta, os medos foram se acumulando com telefonemas de noite, telefonemas pela manhã, mais o toque na campainha de casa.
Um irmão do pai tinha falecido. Vivia noutro país por isso não tinha como ir ao velório nem ao enterro. Já estava bastante doente, hospitalizado e a morte era uma questão de dias. Apesar de ser aguardado, a tristeza era grande, era um irmão muito amado por todos na família.
Como no dia seguinte era feriado, decidiu passar a véspera e o dia com o pai e a mãe. Todos mais calados, mais tristes, mais desanimados. Mesmo assim, estiveram juntos a ver televisão e a conversar até tarde. Na manhã seguinte, feriado, acordou bem cedo e, depois de tomar o café da manhã, começou a tratar das necessidades da casa e do almoço: deu de comer às galinhas, aos porcos, aos cachorros, acendeu o fogão a lenha, preparou a sopa, salada, arroz e o assado, preparou a mesa de almoço, foi buscar lenha para a lareira. Tentou deixar tudo adiantado para quando os pais acordassem, terem um dia mais sossegado, no meio daquela tristeza. Estava na cozinha lavando alface quando tocaram à porta. Nem estranhou que alguém, pelas 8h30, tocasse à porta, num domingo feriado. Quando atendeu, pelo interfone, demorou a entender o que aquela mulher dizia aos gritos:
- Seu tio morreu, seu tio morreu...ai meu Deus que desgraça...
Porque é que aquela mulher veio fazer aquele papel por causa do tio que faleceu há dois dias? E ela continuava...
- Você tem de ser forte e dizer à sua mãe com todo o cuidado...
“Minha mãe?” – pensava. Mas o tio que morreu não era irmão da mãe.
- Sua mãe gostava muito dele. Ai quando ela souber...
As pernas começaram a tremer. Resolveu sair do interfone e ir à porta falar diretamente com aquela mulher, que nem sabia quem era.
Abriu a porta. Nunca tinha visto aquela senhora na vida.
- Bom dia!
- Bom dia, menina. Que desgraça tão grande. Tenha cuidado a dizer à sua mãe.
- O quê? – perguntou.
- Menina, o irmão da sua mãe, hoje, levantou pela manhã, bem cedo, como de costume. Foi à janela, não se sentiu com energia para levantar por isso disse à mulher que ia deitar de novo – algo muito raro nele. E não é, menina, que ele morreu dormindo? Que desgraça tão grande, um homem tão novo.
Ela ficou em choque. Desta vez não eram os adultos de olhos arregalados, nem pálidos. Nem telefonemas noite dentro, ou de manhã bem cedo. Nem outros atendendo e ela acompanhando tudo. Desta vez ela foi para dar apoio ao pai, mas fez com que a mãe não recebesse aquela notícia horrível pelo interfone, com uma mulher aos gritos. Desta vez foi ela que recebeu a notícia, de surpresa e de supetão. Era ela que determinava a forma como a mãe ia saber, como seria o choque, quem a ia amparar, cuidar. Desta vez era a sério e era com ela. Não estava preparada, mas alguém está preparado para algo assim? Agora entendia porque os adultos se perdiam nessas horas. Queria fazer tudo com cuidado para não aumentar o sofrimento. Subiu as escadas e bateu à porta do quarto dos pais. Infelizmente não dava para os deixar dormir mais.
Ana Santos, professora, jornalista
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