Conto “O HOMEM BOMBA”
Quantos telefonemas foram necessários para deturpar tanto as mensagens? Ela sabia: centenas, talvez milhares. Vendo os pés imóveis apontando para o céu na calçada molhada, não se podia imaginar palavras como terrorismo, bombas e atentado. No entanto, isso precisava ser falado, antes que os repórteres lançassem suas versões.
- Meu irmão matou-se. Ele era um terrorista e matou-se, na tentativa de se transformar em uma bomba mais destrutiva.
Aquilo lhe doía só de pensar, que dirá falar. Quanto pinhão tinham comido juntos, nos invernos? Vinha o frio, a gente botava lenha no fogão desde cedo, pegava o pinhão, cozinhava e ficava a tarde toda à toa, descascando, comendo pinhão e conversando... quando isso quebrou entre nós, ninguém saberia responder. Os papos se transformaram aos poucos de coisas engraçadas e comentários da vizinhança, em um desejo de se vingar de todo mundo, ninguém sabia bem o motivo. Era como se o coração do mano tivesse sido envenenado pela palavra dos outros. Tinha tanta coisa da internet que ela gostava, mas como aquele homem normal, trabalhador que abria as portas de todos, fazendo chaves, tinha-se transformado num assassino?
- Ter-ro-ris-ta. A-ten-ta-do ter-ro-ris-ta.
Lhe custava compreender. Lhe custava ver seus pés mortos apontando para o céu, corpo largado ali na rua por tanto tempo porque a polícia desconfiava de que nele, houvesse mais alguma armadilha escondida. Alguma bomba.
- Quase mil e quinhentos reais em bombas... Onde afinal ele estava com a cabeça? Quantas horas um chaveiro precisa trabalhar para ter, juntar, amealhar R$1500,00? Isso de acabar com o carro de tanta bomba era já ter o plano de morrer dentro da mente? Quem é doido de jogar fora seu próprio carro?
- Meu Deus, preciso saber se isso tinha seguro, mas não existe seguro que pague atentado à bomba no próprio carro...
- Se eu pego a canalhada que virou a cabeça de meu irmão, eu... nem sei o que faço, viu?
Lembrou do celular. Do WhatsApp Web. Viu ali vários grupos falando sobre matar, explodir, atacar, viu fotos no FaceBook. Tinha mensagens de ódio por todos os lados.
- Isso não é ser de direita, nem esquerda. Isso é ser terrorista. Bandido perigoso. Do tipo que 30 anos de cadeia é pouco. Mas ele não nasceu bandido, nem era bandido. Viraram ele em bandido.
Não sossegou enquanto não achou meio de abrir as mensagens do celular do irmão e depois levou o aparelho para a Polícia Federal, lá em Curitiba. Sabia muitos nomes de pessoas daqueles grupos de ódio e foi atrás deles. Pressionou por um encontro. A PF pediu-lhe que usasse escuta e ela aceitou sem pensar duas vezes. De alguma forma, ela tinha que resgatar o irmão que sentava com ela pertinho da quentura do fogão, comendo pinhão, nos dias frios. No tempo em que os corações eram aquecidos de amor. Tempos que mudaram com a internet e ela nem viu porque ele ouvia discurso político e ela a previsão do tempo, os signos, música...
- Quem pode se apaixonar por político, quem? Quem pode ter esse amor cego, doido pelo que falam vozes que ele nunca nem viu pessoalmente? E como eles puderam lhe pedir dinheiro, favores, sacrifício? Como puderam mudar totalmente a sua vida?
- Onde estava você, seu bom humor, suas histórias, enquanto seu corpo esfriava naquela chuva, irmão? Onde estavam as vozes que você ouviu e mensagens que tolamente você seguiu e que agora fugiram todas, covardes miseráveis que são? O que lhe fez não pensar em nós? O que lhe fez parar de pensar em nós? Nessa vergonha terrível que a vida nos vai impor? Ter-ro-rista...
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “Aprender a ser um Herói”
- Meninos, bom dia!
- Bom dia, Professora – dizem todos em coro.
- Hoje vamos aprender a ser heróis.
- Que máximo – dizem quase todos.
- Eh lá...não sei se consigo professora. Meus pais estão sempre dizendo que não presto para nada. – diz Garinda.
- Menina Garinda, claro que consegue. Conseguimos todos. Pode me fazer um favor? Peça aos seus pais para virem aqui na Escola amanhã, para a buscarem. Aproveitamos e temos uma pequena conversa. Combinado?
- O que fiz de errado, professora?
- Nada Garinda, relaxe. Quero apenas conversar com seus pais. Nada mais.
- Professora?
- Sim Aninha?
- Como se faz isso? Como se aprende a ser herói? E o que é ser herói?
- Aninha, ser herói é uma das coisas mais bonitas na vida e hoje vamos aprender o que é e como se faz com a vossa contribuição. Aguarde um pouco que já vai ver o que vamos fazer.
- Tá bom, professora.
- Meninos e meninas, peço que se sentem no vosso lugar para darmos início.
- Sim senhora professora – dizem todos em coro.
- Bom, eu quero começar com a vossa ajuda. Quero que construam junto comigo, como deve ser um herói. Digo apenas que deve ser uma pessoa que pensa nos outros, no bem da humanidade, que em situações difíceis se entrega, fazendo o que for preciso pelo bem de todos. E agora, cada um vai falar na sua vez e dizer o que acha que é ser um herói e apresentar um dos heróis que conhece, está bem?
- Simmm – dizem todos.
- Bom, então vamos começar. Pilocas, é a sua vez.
- Professora, meu pai é meu herói porque tirou a minha mãe da pobreza, ensina a gente todos os dias a cuidar do que temos e a ajudar os outros.
Muito bem, Pilocas. Terávio? É a sua vez.
- Professora, meu cachorro é meu herói porque quando eu era mais pequeno, quase me afoguei no rio e quem me salvou ele, o Chinelo, meu cachorro, meu herói, meu tudo.
- Que lindo Terávio. AiAi UiUi, é a sua vez.
- Professora, minha avó é a minha heroína porque ela construiu a nossa família enorme, sustentou todos com a venda de acarajé e nunca ouvi uma queixa fosse do que fosse.
- Lindo AiAi UiUi, lindo mesmo. Dê um enorme abraço na sua Avó, em nome de nós todos, pode ser? Dorzinha, é a sua vez.
- Professora, eu não tenho heróis e não vou mentir, nem inventar.
- Tudo bem, Dorzinha. É assim mesmo. Parabéns pela franqueza. Refri, é sua vez.
- Professora? Para mim todos são heróis: a senhora, meus pais, meus avós, meus vizinhos, meus amigos, as pessoas que não gostam de mim, as que eu não gosto. Todos fazemos enormes esforços, lutamos muito, por isso considero que somos todos heróis.
- Que lindo Refri, muito inspiradoras suas palavras. Obrigada pelo seu testemunho.
- Professora?
- Sim Garinda?
- Eu e a Aninha podemos apresentar em conjunto?
- Não é assim a regra. Posso saber porque faz essa pergunta?
- Professora, deixe por favor. Vai entender depois de falarmos. Não vamos estragar sua aula, prometo.
- Tudo bem Garinda. Vou confiar nas duas. Aninha e Garinda, vou abrir uma excepção, é a vez das duas para finalizar.
- Obrigada professora. Eu e a Aninha somos as heroínas que conhecemos. E a professora é também a nossa heroína. Eu e Aninha somos heroínas porque vivemos em mundos envenenados, sem saída, mas não queremos viver daquela maneira e procuramos juntas outras formas mais saudáveis. E a professora é a nossa heroína porque nos ensinou que existe um mundo melhor noutros lugares, nos livros, na nossa cabeça.
- Eu e Garina vivemos num lugar de droga, de milícias, de crime, de medo. Nossas famílias são criminosas, vendem droga, fazem mal a todas as pessoas. E agora também lhes deu para irem para Brasília tentar destruir o Planalto, matar políticos, governantes e juízes. Meu tio foi ontem cheio de bombas para Brasília para tentar destruir tudo. Eu e Garinda não concordamos com nada disso e queremos outra vida. Isso nos uniu, desabafamos e encontramos forças na outra e temos a professora, abrindo outros horizontes para a nossa vida. É isso professora, mais ou menos.
- Meninas, fiquei emocionada ao mesmo tempo que fiquei preocupada. Parabéns pelo depoimento, pela coragem e pela visão da vida. E obrigada por acreditarem em mim. Amei todos os depoimentos. Que aula maravilhosa, não foi?
- Foi – respondem todos.
- Amanhã continuamos mais um pouco neste tema sobre ser herói. Proponho que todos tragam amanhã uma solução para uma situação difícil na vida. Vamos tentar ser os heróis de pessoas que conhecemos, que tal?
- Ok, professora – dizem todos.
- Até amanhã meus pequenos grandes heróis. – diz a professora.
Ana Santos, professora, jornalista
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