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2 Contos: “O GOLPE DA VELHINHA” e “O Natal das crianças adultas”


Mar de Medusas em Azul Ultramarino. Ana Tristany

Conto “O GOLPE DA VELHINHA”

Sabe o golpe da velhinha desamparada? Aquele em que você morre de pena dela? Conhece alguma velha que se preste a dar um golpe, escamotear, furtar, fugir?

Pois é, eu vi uma dessas em ação.

Fazia cara de coitada, mas do nada saía a voz de comando:

- Aqui ninguém bebe água gelada!

Em Salvador da Bahia, imagine! Você ta lá, se escabufando de pintar parede, muro, grade e quando entra na casa, lá estão os óio te cercano:

- Não cruze os braços assim! Não faça isso! Não fique parado na porta!

Mas a parte dela, o acerto da conta semanal, o dinheiro, não veio na primeira semana. Nem na segunda, terceira ou quarta.

Vai ino, vai ino, você começa a desconfiar da desconfiança dela – e do silêncio, na hora de pagar o que devia.

E a conta dela subino comigo...

- O piso do seu banheiro é igual ao aqui de casa, né? Me dê uma pedra! Me dê duas, vai, o que é que custa...

- Custa dinheiro! – meu coração gritava!

Mas não fui criado pra ser mesquinho, não acredito em gente mesquinha, não quero isso pra minha vida.

- Você vai lá na loja e pega a massa no seu cartão.

- No meu cartão não porque eu nem trouxe. E a obra é sua. A senhora quer fazer a obra e quer eu pague, ao invés de me pagar?

E não pagou – pelo menos não ainda - e mesmo depois que cobrei e conversei à sério, ela, ó - olhava pro chão. Quieta, quieta.

Mas não foi só isso, não:

Foi na loja de material, levando uma lata véia de mata cupim. Vazia.

- Quero dizer que o senhor me vendeu uma lata de veneno vazia e vim pegar uma cheia.

- Que é isso, senhora? Veja aí que não tem nenhuma lata furada aqui. E digo mais: se a senhora achar uma lata furada aqui, eu lhe dou todas as do estoque!

Aí todo mundo acha que ela calou, né?

Surpresa. Ela se agarrou num mata cupim e mandou:

- Eu levo e pago depois!

E fugiu.

Uns 70 anos, ela deve ter. Ou mais. Agarrada no veneno, ela subiu a ladeira e deixou o dono da loja de boca aberta, atrás.

Você óia pra ela e num diz... sem sastifação nenhuma, ela passa a perna nas pessoa... nunca tinha ouvido uma dessa...

Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV

 

Conto “O Natal das crianças adultas”

Tem quase 60 anos, mas parece uma criança. Olha o espelho e já vê os cabelos brancos cada vez mais frequentes. Sua pele cada vez tem mais rugas e agora que perdeu uns quilos, as rugas triplicaram. Câimbras durante a noite, dores articulares e esquecimentos, durante as 24 horas. A lista das coisas que é melhor não comer ou não comer muito vai crescendo. Já se pergunta se vale a pena subir as escadas, árvores, muros. Já não se esquenta quando aquela mulher insiste em fazer dela uma bobinha, tentando que ela lhe pinte a boneca – “faça-me um favor...”. Olha com carinho para as suas pernas, quando elas não se movimentam na velocidade desejada – e sonhada. Quando vai ao sótão já sabe que vem de lá com umas 10 mossas na cabeça, tantas são as cabeçadas que dá na madeira do telhado – aprendeu a rir sempre que sente a pancada e o sabor mudar na boca. Cada vez é mais frequente tropeçar. Nem sabe como consegue enfiar os chinelos em lugares que quando ela decide se mexer, o pé ficou preso ao chinelo e “lá vai ela catando cavaco”. Sente-se mais feliz ainda quando os amigos da rua dizem: “bom dia, garota!” Tudo isto é o caminho iniciando a descida, mas olha com esperança esse futuro que a espera.

Os mais velhos diziam isso de várias maneiras, mas ela nunca entendeu. Até agora... Ouvia as pessoas adultas dizerem por todo o lado que era preciso manter a criança dentro da gente. Achava que entendia o que isso queria dizer. Rir muito, fazer coisas bobas, comer sorvete, talvez seja isso – pensava ela. Até ouvir a mãe dizer que se sentia com 40 anos, quando tinha 85, e que se não fosse o seu corpo se degradando ela tinha energia mental para realizar uma imensa lista interminável de sonhos. Até ver pela primeira vez avelãs crescendo na árvore, aos 45 anos – uma criança. Até ver um beija-flor pela primeira vez, aos 47 anos – uma criança. Até ver pela primeira vez um pica pau, aos 58 anos – uma criança. Não ter dinheiro para comprar o que os outros compram – e ela também compraria se o tivesse – não ter dinheiro para descansar, sossegar, respirar, acalmar, as preocupações e os medos, a aproximou da sua criança interior,   sentindo o sorriso acontecer sem dar conta, seu peito encher de mundo, de sentido, de união com a natureza – como quando mergulha no mar, ou no rio, ou toma banho de chuveiro no jardim.

Talvez seja assim, melhor sem dinheiro, melhor descobrir os beija-flor e os picas paus da vida, melhor perder os que ama, melhor as desilusões de adultos e sobre adultos, a caminho dos 60 anos. Ela acha que é isso, para conseguir se aproximar mais da sua criança e das crianças existentes dentro do corpo dos que gostam dela. Para sorrir quando cair, para gargalhar quando se esquecer, para viver a dançar de cada vez que acerta a madeira do telhado com sua cabeça. Ser criança, ser quem é, procurar a bondade, o olho doce das pessoas, o calor do sol, a frescura das noites.

- Alô?

- Ana?

- Sim?...

- Finalmente consigo falar contigo.

- Ué, sempre estive aqui...

- Sim, mas tenho andado muito ocupada.

- Imagino

- Não entendi...

- Nem eu...

- Ana? Estás me ouvindo?

- Perfeitamente...

- Liguei para te desejar um Bom Natal.

- Obrigada

- Como vai a tua vida? Melhor?

- Melhor como? Sim, estou bem.

- Melhor que eu digo é se...bem...se já voltaste a ter dinheiro.

- Ah, pois...tinha de ser...

- Não estou a ouvir bem...tens ou não dinheiro de novo?

- Estás a precisar? Como nos velhos tempos?

- Quer dizer...se tivesses, era capaz de me dar jeito. É que queria comprar um barco, que está num bom preço, mas imagina que ninguém se aproxima para me emprestar. Eu devolvo, eu juro que devolvo.

- Sim, sei disso. Lamentavelmente não tenho para te emprestar, não.

- Sério? Mas fizeste obras na casa...pensei que...

- Pensaste errado. Não tenho e vou ter de desligar porque tenho de ir ter com a minha criança.

- Tá bom, desculpa incomodar. Não sabia que tinhas uma filha.

- Não tenho.

- Mas falaste em criança.

- Falei, mas é outra criança que não é minha filha. É do meu interior.

- ah...filha do teu irmão? Como foi o único que ficou na vossa terra...

- Me ajuda menino jesus... Tenho mesmo de ir, me esperam meus amigos beija-flor e pica pau...

Ana Santos, professora, jornalista

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