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2 Contos: “NEM PARECIA MENINA...” e “Nuno Guerreiro”

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    portalbuglatino
  • há 10 horas
  • 6 min de leitura

Christina Motta
Christina Motta

Conto “NEM PARECIA MENINA...”

Não era uma menina como as outras. Sempre tinha que fazer uma experiência prática das coisas. Isso com o tio, ao consertar torneiras, ainda com 2, 3 anos. Era impossível lidar com a forma de agir que adotava. Sempre experimentava. Tinha uma energia que se equiparava com sua curiosidade.

Assim, passava férias na casa da avó, com quem os tios moravam e depois voltava para São Paulo e depois para Santo André. Sempre experimentando. Amava brincar de luta com os meninos do seu prédio. E ganhava deles todos. Não ganhava do cimento crespo do chão da garagem. O dedão do pé acusava: sempre “sem cabeça”. Sem tampa. Mas isso não a impedia de correr e pular por toda parte.

- Nem parece menina.

Muitas vezes ouviu isso.

- Essa menina nunca para.

Mas ela parava e parou muitas vezes. Quando, por exemplo aprendeu a ler sozinha, só porque seu pai lia o jornal e ela queria estar no seu colo, mas não sem fazer nada. Ficava juntando letras e perguntando seus sons. Quando viu, já estava lendo. Desde pequena.

- Palavras são sons com as mãozinhas dadas. Sempre imaginava como as coisas eram caprichosamente combinadas com as palavras.

Não suportava quando os meninos batiam na sua irmã pequena e aí a coisa ficava feia porque batia neles em dobro. Isso já deixava o aviso bem claro: Não bata na minha irmã que vai ter volta.

As brincadeiras de menino, aliás, eram sempre bem melhores que as de meninas – ela achava. Não por causa de carrinhos ou futebol – que ela achava meio bobas. Mas os quebra-cabeças, inventar coisas, pular de lugares altos, tomar conta das lambretas no seu prédio ou andar de bicicleta, brincar de pic-esconde, trepa-trepa, queimado, pular a cerca do parquinho e brincar... ah... isso ela amava!

- Essa menina só brinca com os meninos...

Toninho, Fernando, Barrinha, Celsinho... todos parceiros. O Barrinha fazia anos junto com ela. Era especial e seu amigo “café com leite”. Celso também. Ele tinha se queimado com cera quente e por nada a pele da perna meio que “rasgava”. Era um pouco fraca, tinha cicatrizes. Mas tudo isso que ela gostava de brincar, gostava mais de fazer com eles.

Quando entrou pra escola, era igual. Seus melhores amigos eram meninos. Tinha já muitos talentos especiais. Sabia escrever. Bem. E quando não lhe davam a oportunidade de falar, escrevia. Não era de grandes turmas. Era de grandes mergulhos silenciosos em si mesma. Uma menina com alma de menino, cuja mãe amarrava os cabelos em Chiquinhas que lhe deixavam com os “olhos arregalados” de tão forte que puxavam seus cabelos. Odiava. Odiava as calcinhas de rendinhas e os vestidos. Odiava sapato boneca. Odiava a hipótese de dançar na festa junina com aqueles vestidos rodados. Odiava bonecas e roupinhas. Mil vezes preferia dar com seu Picapau de pelúcia e bico de arame forrado de feltro nos “folgados que se metiam com ela”. Chegou a furar o feltro, de tantas “bicadas que deu nos folgados”.

- Essa menina não liga pra brinquedos de meninas, já reparou?

E assim ela cresceu...

Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV

 

Conto “Nuno Guerreiro”

Quero vos contar sobre Nuno Guerreiro, um talento português impressionante que morreu esta semana, com 52 anos. Estudou dança na melhor escola de Portugal - Escola de Dança do Conservatório Nacional - mas uma professora de canto, da mesma escola, reparou no seu timbre diferenciado. Ele gostava de cantar mas era apaixonado por dança, por isso fugiu durante uma semana daquela professora. Até que ela lhe explicou, e ele percebeu, o dom que tinha – não só o timbre raro mas uma perfeita afinação.

A sua voz e seu canto, foram-lhe abrindo as portas do mundo do espetáculo. Ajudou um pouco ter estudado dança com Catarina Furtado, a mais respeitada apresentadora de televisão de Portugal e Embaixadora da Boa Vontade do Fundo das Nações Unidas para a População, o UNFPA, há 17 anos, no entanto foi sempre visível que eram amigos de verdade, não uma relação de interesse. Ambos grandes amigos de Sara Tavares – outra artista inacreditável – que também nos deixou recentemente. Como custa ver partir pessoas que, sem as conhecermos pessoalmente, nos ajudaram tanto com suas músicas, seus depoimentos, suas lutas. Nuno era criticado por quase tudo: seu jeito feminino, sua voz “estranha”, sua forma de estar, seu sorriso, suas tatuagens e mais de mil e uma coisas. Sofreu. Adorava estar no palco, mas detestava essa censura dos que apenas respiram preconceito, dos que têm dificuldade em aceitar os que fazem outros caminhos, dos que têm dificuldade em aceitar que existem pessoas com coragem para ser quem são. Todos usufruíram da sua voz, das suas canções, mas não toleraram sua ousadia.   

Por volta de 1994, ele era a estrela, como vocalista dos “Ala dos Namorados”. Nesse ano, fui com uma amiga, assistir a um espetáculo ao vivo em Lisboa. Uma amiga nossa, dos Açores, ia cantar e nós queríamos vê-la e ouvi-la. Tivemos autorização para entrar na sala dos artistas que iam cantar ao vivo, para a cumprimentar, estar uns minutos com ela. A sala estava cheia e pude ver Nuno Guerreiro, bem do nosso lado, com uns 19 anos, fazendo exercícios de aquecimento de voz, super focado. Nunca mais esqueci sua concentração, seu cuidado, sua entrega. Para quem está sentado no sofá avaliando se a pessoa desafina ou vestiu uma roupa “esquisita” para o seu gosto, a fragilidade e importância destes momentos nem lhes passa pela cabeça. Pude ouvir, ali do lado, aquela voz, aquela projeção, aquele timbre, aquela magia.

Não consigo entender como o Brasil nunca o quis conhecer, como nenhum produtor teve esse pensamento. Nem consigo entender como a Sara Tavares só veio aqui uma ou duas vezes, mas nunca cantou na Bahia. Talvez numa outra vida alguém me explique.

Nuno Guerreiro, como Sara, foi dos que eu acompanhei sempre, como um timoneiro, como aquele barco que vai na frente, cortando o nevoeiro denso, sem medo, certo do que devia fazer, do que seu coração indicava. Ou sem saber o que ia encontrar, com medo, mas mesmo assim seguia. Sofrendo e seguindo, ao mesmo tempo voltando-se para trás com um largo sorriso, dizendo a todos nós para seguirmos, mostrando que vale a pena todo o esforço, toda a dureza. “E tens razão, Nuno. Vale a pena, vale o esforço.”

Numa fase da minha vida ouvi tanto, mas tanto, seu disco “Tento saber” (2002), que sei as letras todas de cor. Especialmente as canções “Tento Saber” e "Estou contigo (Não tentes duvidar)", que aconselho a todos, e que me são muito especiais. Letra e música de Nuno Guerreiro, foram músicas que me acompanharam como se fossem minhas amigas, quando dei o passo de tornar público que me relacionava também com mulheres e enfrentei a onda inicial do mundo tentando me engolir, como se fosse uma insignificante pulga saltitante da areia que decidiu sair do seu lugar do costume pensando que é “alguém. Essas músicas me acolheram, me fizeram companhia. É Nuno! As pessoas acham que nos podem esmagar de todas as formas, só porque somos diferentes. Sim, eu também sei das gargalhadas patéticas dos que se assustam com nossa aparência ou jeito, ou das tramas nas nossas costas, ou dos comentários fuzilantes, ou da invisibilidade onde nos tentam colocar. Que bom que Catarina Furtado estava na tua vida. Essas pessoas são tão importantes... O que será de Portugal quando ela não estiver mais por aqui? Nem é bom pensar. O Japão te amou, como te amaram outros mil e um países. Como não poderiam te amar? Porque não o Brasil? A Bahia?

Pelo menos no meu conto serás falado no Brasil. Pelo menos.

É sempre assim. Que raio! É esmagado o diferente como se isso fosse o certo, por anos e anos e anos. Depois lamenta-se seu fim, lamenta-se a sua quebra. As pessoas não são robôs. Nenhuma é.

Ainda.

Nuno, tenho de ir: mergulhar por baixo das ondas, iluminar as invisibilidades, cuidar de mim para não ser esmagada – também! Sabes melhor do que eu, que como num show, não se pode desafinar nem um segundo, mesmo que afinemos o resto da vida inteira. Eles, os que mandam, não perdoam.

Poucos dizem o que todos devíamos dizer, poucos fazem o que devíamos fazer, poucos sentem o que todos escondem. Mas se não somos nós, os que conseguimos fazê-lo, quem o fará?

Pego na chave do carro e saio para a minha aula de canto. O Coliseu e a Concha Acústica são para breve e eu quero estar a 100%.

 

“Tão alto e tão longe como nos fazia viajar com a sua voz, singular, inconfundível, interminável. A falar do Nuno não gastamos adjetivos em vão nem os banalizamos. Era diferente para melhor”

Catarina Furtado

Sua última entrevista, aqui.

Ana Santos, professora, jornalista


 
 
 

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