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2 Contos ideológicos


Margaret Bourke-White (1904-1971)

Conto “CORRUPÇÃO OU OPORTUNIDADE”

Ela se acostumou com a frase, mesmo sentindo raiva dela. Em qualquer lugar, sempre havia pelo menos uma pessoa que aceitasse “apoios financeiros” e quando se censurava a ação, a frase saía quase que maquinalmente:

- Ah, mas aqui é assim...

E o aqui era uma condenação, por acaso? A pessoa não podia simplesmente recusar o tal apoio e seguir com a sua vida? Não. Cada vez que isso acontecia, que você dizia não, o olhar do outro mudava.

- Vou chamar meu chefe.

- Isso nunca vai mudar, entenda.

- Não me levanto daqui por menos de 40 %! - Tudo isso ela ouvia.

- Mas alguém precisa começar a não aceitar a corrupção...

- Agrado.

- Não amigo. Corrupção.

E foi assim, de pessoa em pessoa, de não em não, que ela passou de tresloucada a respeitável, enquanto inúmeros corruptos e golpistas passaram a ser vistos socialmente como marginais - com dinheiro ou sem ele.

- Excelência me dá a oportunidade de não vir trabalhar e receber uma parte do salário...

- Rachadinha, você também? Mas já se sabe que rachadinha é crime, gente...

- Excelência deu uma oportunidade para o meu amigo na licitação e ele, pra me agradecer, logo me ofereceu um emprego...

- Isso é ilegal, você sabe...

E o Brasil foi evoluindo. Os caixotes de dinheiro foram perdendo espaço. Depois de alguns anos, ninguém mais oferecia “uma cerveja” ao guarda para não ser multado – era uma vergonha. Também ninguém se dispunha mais a viver pulando de cabide, em cabide de emprego – não existia ficar em casa e receber. Aliás, ninguém ajeitava emprego pra ninguém. As pessoas eram convidadas por sua competência e pronto.

- Evoluir demora, dói e dá muitas voltas, mas há momentos em que é evoluir ou morrer, desaparecer. E a hora de crescer chegou. Precisou haver tanta diferença social que os ladrões avançavam nas pessoas comuns, na rua. Mas foi assim.

- O deputado chamou meu menino pra oferecer uma oportunidade e o garoto colocou o gravador em cima da mesa com orgulho! Quem diria que eu cheguei a ver fiscal falar antigamente: - Você não quer se comunicar comigo! – quando queria propina, hein?

Muita coisa aconteceu, muita gente morreu, se feriu. Na época da pandemia foi um horror. Que anos! O Brasil quase virou uma terra de ninguém. Mas vendo a rua limpinha, sem lixo, as pessoas ajudando umas às outras, ela suspirou bem fundo, enquanto afofava a terra do vaso, ouvindo o João de Barro cantar na pitangueira e sorriu por dentro. Tinha sido um pé de briga, mas há lutas que valem à pena.

As outras gerações valorizavam mais o tempo que passavam juntas e o afã louco de fazerem mais e mais dinheiro tinha sido pouco a pouco trocado por passarinhos, ruas limpas e cooperação. O tempo de correr havia acabado e...

- Pacabrum! Acordou assustada com o trovão.

- Que droga...

Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV


Conto “A aventura que é viver”

“O Amor não se explica”

“Não se morre de amor”

“Quando fores grande perceberás”

“Isto são coisas para adultos”

“Eu vi logo que não ias a lugar nenhum.”

“Quem ela pensa que é?”

“Ela não se enxerga.”

“Não te deixei ir porque é melhor para ti.”

- Lembras de mais alguma?

- Não, neste momento só me lembro dessas.

- Não te preocupes. Já chega de recordar esses pesadelos estranhos que tens.

- Mas Pai, essas frases que ouço nos meus pesadelos, existem? Ou são imaginação minha?

- Depende do lugar por onde passas, depende das pessoas com quem te cruzas, ou com quem convives. Existem nuns lugares e não existem noutros. Existem na boca de algumas pessoas e não existem na boca de outras pessoas. Mas vamos parar esta conversa para fazermos o que realmente importa. Lembras do que realmente importa?

- Simmmm, é a hora de ler livros de aventura.

- Isso mesmo! Já lemos “A volta ao mundo em 80 dias”, “Viagem ao Centro da Terra”, “Vinte mil léguas submarinas”, de Júlio Verne. Gostaste muito, não foi?

- Amei Pai! Simplesmente amei. Como gostava de ter conhecido Júlio Verne.

- Mas conheceste. Não pessoalmente, mas pelos livros.

- É? É...realmente é verdade Pai. Eu poderia ser uma Júlia Verne?

- Claro filha. Tu podes ser quem tu quiseres.

- Ai Pai...tenho tantas ideias, tantas tantas...

- Continua a alimentá-las. O mundo precisa de ajuda, de meninas como tu, com ideias, com vontade de serem “Júlias Vernes”, ou uma exploradora das montanhas, ou dos mares, ou das pessoas. Filha?

- Sim Pai?

- Só te peço uma coisa, posso pedir?

- Claro Pai...

- Não sejas igual a ninguém. Lê todas estas aventuras e busca uma aventura tua, uma forma tua.

- Combinado Papito. Mas agora não podemos perder mais tempo. Quero muito saber como foi a vida de Ernest Henry Shackleton e o que aconteceu com o seu barco “Endurance”.

- Essa é uma das maiores aventuras que conhecemos, esse foi um dos homens mais nobres que existiram. Vamos lá saber, ler. Quem lê hoje, em voz alta?

- Eu, eu...

Ana Santos, professora, jornalista

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