Conto “GERAÇÃO SOLIDÃO”
Ela via as pessoas falando de si mesmas, de tudo o que supostamente sabiam, estudavam, conheciam e pela milésima vez tinha a total consciência de que todas falavam sozinhas, mesmo sabendo, vendo que estavam acompanhadas. Não se podia dizer que trocavam conhecimentos porque faziam as outras pessoas de espelhos - só se viam, só se ouviam. O interlocutor queria responder, coitado, mas quando abria a boca, a pessoa logo olhava o celular para marcar a diferença entre elas.
- A dor é o que modela as pessoas e todas estão sendo modeladas pela solidão...
Num momento do mundo onde o sentido da palavra dor pode se transformar no sinônimo da palavra problema e todos têm a mesma febre de repetição de termos da internet, sentir dor, a palavra dor, a dor em si parecem menores em todos os sentidos.
- “Qual é a dor do seu negócio? Qual é a dor de não criar sua própria copywriting” – ah, sim, com inglês sôfrego, num lugar onde o analfabetismo funcional cresce sem parar. E para todos parecia fazer sentido, mesmo que ela não fosse capaz de alcançar qual.
- Qual é a sua dor? Sua dor é perder dinheiro? É não apostar? Alô galera do YouTube!
Mantinha os olhos fixos em um ponto – o ponto da sua alma, acreditava. E naquele ponto da sua vida, sabia que comparar problemas funcionais de uma casa ou escritório com perdas emocionais, saudades, pessoas mortas era incalculavelmente ignorante. Medíocre, bem dizer.
- Entre a dor de perder meu pai tão criança, ouvindo a vizinha vir fazer fofoca da chegada da ambulância, da saída, de meu pai estar espumando - tendo como único consolo os cachorros de salsicha marrons perambulando na calçada - ter qualquer problema de empresa, de texto, palavras em inglês, vendas, internet não têm comparação possível. Chama-las de dor é uma coisa ridícula. Usar a mesma palavra para duas coisas tão diferentes, apenas porque os americanos fazem isso, é absurdo - mas o Brasil é assim.
Dor é quando sua vida tem um preenchimento e de repente aparece o furacão do vazio, minha mãe perdida, a gente, minhas irmãs, o frio, ter sarampo até dentro dos olhos, ficar de cama e sem ir à escola muito tempo – e olhe que tudo isso não se compara a ter um pai com dor de cabeça de manhã e de repente, não ter mais pai.
Talvez por isso ouvir aquelas pessoas falando coisas vazias lhe trouxesse aquela sensação de vazio de alma. Era como se houvesse o idioma da vida humana e o idioma dos fúteis. Era como se no idioma da futilidade habitassem palavras que não cabiam na vida real. Eram como anomalias advindas do idioma da futilidade.
- Narrativa é diferente de mentira, transparência de político é uma palavra proibida porque foi suja, contaminada; “ganhe sete dígitos, fique rico, é fácil ficar rico” ou qualquer coisa que coloque a riqueza como uma coisa tão simples que só é pobre quem nasceu idiota; qual é a “dor” da sua empresa - quem é você pra mentir e deslocar tanto assim o significado das palavras?
Pessoas vazias de generosidade, como a mulher que levou seu relógio Patek Philippe – velho, um verdadeiro cacareco – pra vender e que, sentada naquele canto, espumava o veneno das aleivosias. Ela e o coitado do relojoeiro, que era obrigado a ouvi-las.
- Muitas vezes, não parece mesmo ser o mesmo idioma entre duas pessoas, embora a gente reconheça as palavras, uma a uma...
Haveria tanta coisa que ela poderia apontar para confirmar esse egoísmo que deu origem a uma geração tão sumariamente solitária, mas... os egoístas morriam sozinhos. Sozinhos... Absolutamente sozinhos...
- Vai ver é karma.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “Para que serves, talento?”
Cabeça entupida de sonhos, e em cada sonho uma porta fechada a sete chaves, um muro, um fosso e cães de guarda.
Não aprendeu a dividir, a partilhar, então nem sabia que existiam. Se outro alguém próximo tivesse um talento, significava que era uma área onde era melhor nem entrar. Esse espaço já estava ocupado, entendem? Como uma cadeira ocupada no cinema. Se existia uma pessoa boa em música, outra em cozinha, outra em artes plásticas, outra em medicina, outra em dança, outra em esporte, outra em escrita, outra em filosofia, outra em ciência, outra em carpintaria, outra em eletricidade, etc..., era como uma sala de cinema com as cadeiras praticamente todas ocupadas. Onde se ia sentar? Tantos sonhos e tão pouco espaço para circular. Ainda por cima não gostava só de uma “cadeira”, gostava de muitas, muitos sonhos, muita imaginação. Um dia, num dia bem comum, numa tarde bem igual às outras, percebeu que as “salas de cinema tinham camarotes”. Mais espaço, mais oportunidades, outras formas de concretizar desejos. Opa, isso quer dizer que existem mais cadeiras para ocupar e existem “lugares que ninguém tem o mínimo interesse”. Ninguém tem o mínimo interesse, menos ela. Uma das atrações que sentiu foi pelo Hip Hop, repleto de ritmo, de embalo, rimas, mensagens diretas, simbologias. Pensava ela que era quase sempre feito por palavras que diziam pouco, mas se surpreendeu. As palavras podem dizer muito. Trueno, jovem de 21 anos, argentino, a chacoalhou. Filho de pais músicos e ativistas, não parece ter canções, mas manifestações em cada momento que canta. Uma riqueza musical enorme, um letrista apaixonante, uma forma de fazer hip hop que abre o futuro. Também ele “tinha cadeiras ocupadas”, mas os que estavam sentados nessas mesmas cadeiras, lhe ensinaram a partilhar, a dividir, lhe ofereceram formação, muitos aprendizados. É um fenômeno musical mundial, com mensagens de identidade muito próprias. É, Trueno está lhe mostrando como abrir as portas, onde estão cada uma das sete chaves, como se salta o muro, como se desvia do fosso, como se faz amizade com os cães de guarda. Como se segue, como se é quem quiseres ser.
Ana Santos, professora, jornalista
Comments