2 Contos: “FALANTES PROFISSIONAIS” e “Agora vivo acompanhada”
- portalbuglatino
- há 3 dias
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Conto “FALANTES PROFISSIONAIS”
Passávamos sempre um pelo outro e nos cumprimentávamos. Melhor dizendo: eu dizia bom dia e ele abanava a cabeça. Branca como a neve.
Mil dias, mil vezes dissemos bom dia um ao outro desse mesmo jeito. Justo hoje, eu ia repetir o cumprimento, mas ele me parou com gestos e sons. Percebi logo que por algum motivo ele não falava. Seria surdo?
Gestos precisos, sons eloquentes. Em poucos segundos desenhou com as mãos uma metralhadora, o numero 2 com os dedos, uma expressão de medo no rosto. Eu ia decodificando:
- Você estava dormindo e ouviu uns tiros? Duas da manhã? Entendi. Eram bandidos, é? Claro, você ficou om medo! Ok, vamos ficar atentas sim!
Eu falava, ele assentia. Nos comunicamos muito bem. Nem parecia que ele não falava o nosso código. Éramos apenas dois comunicantes em ação. A todo vapor.
Como as pessoas podem abrir mão desse universo com tanta facilidade – ela pensava. As pessoas viviam cada vez mais infelizes, mais deprimidas e solitárias e não percebiam que precisavam desse espaço de comunicação ativa, onde até quem não fala, se vira.
Pensou no significado de armar seguranças, sem prepara-los nem minimamente para mediar conflitos e os tiros que os seguranças dão na própria clientela de farmácias, supermercados, na rua. Nos espancamentos frequentes de clientes. Na baiana que teve que ficar nua numa loja para provar que não havia roubado nada. Na atitude mais que suspeita de muitas policias do Brasil. No doente mental assassinado por guardas rodoviários. No ódio plantado dia a dia, gota a gota. Seria mais fácil se as pessoas simplesmente falassem umas com as outras. Mas não: a manipulação desses novos pobres – os de comunicação – era tão visível e eles não viam.
- “O Lula tem pelo menos 10 sósias – você pode acreditar ou não, mas eu descobri porque me disfarcei de garçom, entrei na sala dos sósias e fotografei pra vocês”. “isso é uma narrativa plantada pelos comunistas”; “Paris está cheia de muçulmanos que fazem pelos menos dez filhos – um com cada mulher. É o ranço do sangue”... – tudo isso indo e vindo pelos grupos de WhatsApp.
- ... E duas pessoas que passaram a vida sem saber que uma não falava, se cumprimentaram mil vezes, desenvolveram amizade, confiança e segurança suficientes para, um dia, ele apenas se aproximar, emitir diversos sons não codificados, mas exercer o seu próprio milagre da comunicação. Eu vi isso. Eu vivi essa experiência.
E vocês?
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “Agora vivo acompanhada”
Deixa eu te contar sobre pessoas que têm importância.
Que deixam espaços vazios, fazem desaparecer sorrisos e viciamos em saudade.
De quem sentimos falta.
Aceitamos isso durante um tempo, até que percebemos que seguir assim não nos faz bem. E não as homenageia. Tem algo de errado nisso. Parece que paramos no tempo, na vida, nos dias, enquanto o mundo parece caminhar em velocidade ultrassônica.
Dizem que precisamos deixá-las ir, seja lá o que isso quer dizer.
Isso não me deu resposta, não me resolveu a inquietação.
Aprendi a não as deixar ir, aliás, aprendi a fazer precisamente o contrário – a carregá-las comigo. Uma vez ouvi uma entrevista de Maya Angelou em que ela dizia isso – e não esqueci mais. Nos momentos de dor, de medo, de insegurança, de dúvida, de enfrentamento, em que os outros esperam você provar seu valor, ela carregava dentro de si, todos os que amava – vivos ou não vivos. Principalmente os que lhe faziam mais falta, os que deixavam os espaços vazios. Esses. Se sentia acompanhada, segura, protegida.
Podem me chamar de maluca – já me chamaram tantas coisas que já nem ligo a nomes, a rótulos – mas acredito nisso que fazia Maya Angelou. E faço.
Não fazia. Vivia só por dentro achando que tinha de ser capaz de fazer tudo bem sem ajuda de ninguém. Me dei conta que isso era algo que aprendi no mundo. Nem sempre me fez bem. Um dia me perguntei porque teria de fazer isso, de continuar. Me perguntei se era isso que queria. Me perguntei o que queria. Me perguntei o que me fazia bem. Depois andei muito tempo tentando me escutar, tentando ouvir as minhas respostas, sem pressa, sem ninguém me dizer o que era melhor para mim. Sem eu me dizer o que era melhor responder. Exato, ouviram bem, muito tempo tentando verdadeiramente me ouvir e ouvir o que eu sou verdadeiramente. E um dia surgi, voltei. Nesse dia me surpreendi com a minha volta. Escondida durante tantos anos, debaixo da Sr. Doutora, da Sr. Professora, da filha, da amiga, da grande isto, da melhor naquilo, da que não sabe fazer bem algumas coisas. Essa eu que não tinha nomes, qualidades nem defeitos, essa pessoa, que apenas vivia seguindo seus desejos, sem pensar em censuras nem regras, sim essa pessoa, voltou aos poucos, bem devagar. Ainda foge de vez em quando, ainda se assusta com tudo em sua volta. Mas eu não lhe dou pressa, deixo-a estar, seguir seu ritmo. Acolho quando volta, não pressiono quando desaparece, aprendi a não sentir falta. Se eu estiver bem ela volta. E fica. E faz companhia aos que amo e vivem em mim.
Aos poucos, vou me sentindo no ambiente que me deixa bem, que me nutre, que me equilibra, em que me olho e sinto inteira. Sem pressa para obter algo, nem prazo para conseguir aquilo que todos querem. Não quero o que todos querem. Não faço parte desse jogo, corrida, competição, enredo social. Não faço. Não faço mais.
Agora sou eu e os meus. Esta é a minha vida. E ela é linda. E doce. Mesmo quando ela é dura. Mesmo quando coloca situações difíceis. Mas as flores voltaram ao jardim, a areia voltou à praia, as meias estão sempre bem. Já não tenho sobressaltos com as ameaças dos outros, com as imposições, as obrigações, os prazos, os deveres, os medos, as censuras, as vozes altas, os olhares intimidadores, os conluios, conspirações, maquinações, tramas, arranjos, complôs, conchavos, conciliábulos, cumplicidades.
Deixa eu te contar sobre pessoas que têm importância.
A primeira és tu. Vai procurá-la. Deixa-a voltar aos poucos. Trata-a bem. Para ela voltar e ficar.
Os outros, vai em busca deles, os que morreram e todos dizem que desapareceram. Desaparecem se os esqueces, se não caminhas com eles. Ocupa os espaços vazios, relembra seus sorrisos e cura a saudade. Deixa-os voltar aos poucos. Trata-os bem. Para eles voltarem e ficarem.
E diz-lhes que sentiste falta deles. Que andavas à sua procura e demoraste a encontrá-los.
E ama-os.
Convida-os para um daqueles almoços de bacalhau.
E se puderes, convida-me também. Adoro comer. Bacalhau então, amo.
Mas tudo que seja para mastigar estou dentro. Levo muita gente comigo, mas só eu como.
Ana Santos, professora, jornalista
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