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2 Contos: “EPA BABÁ E O AXÉ DA BAHIA” e “Eu? Afeganistão?”


Lygia Sampaio

Conto “EPA BABÁ E O AXÉ DA BAHIA”

Seus olhos foram se fechando sem querer – quem acredita no axé, sente a energia que circula quando alguém do povo de Orixá canta para chamá-lo, enquanto alguns filhos de santo o saúdam. é mesmo irresistível. Mas... quem ali desejava resistir?

Era sempre tão reconfortante ser parte daquele carinho. Curioso porque crescera e se criara em outro lugar e pouco tempo havia de conhecimento entre eles. Mas... era como se todos pudessem se acolher em cada cântico e cada um deles trouxesse um pouco mais de alivio.

Pensou em seus problemas e sorriu por dentro. Estava com a saúde boa, havia comida, água e repouso em sua casa, era feliz. Claro que queria crescer mais, claro que se preocupava em prover o amanhã, mas... se a vida é cada dia, aquele dia era bom como o haviam sido os prévios. Enfrentaria os desafios um a um como sempre, planejaria soluções, encontraria pessoas novas, parcerias. Mas o essencial – o mais que o essencial até – habitava sua vida e ela agradecia sempre.

Axé.

Havia conhecido essa palavra tão pequena na Bahia. Na prática, ela era tudo, estava ao redor de tudo o que vale à pena na vida. Cada vida sem axé era perdida. A vida, afinal, só valia se tivesse axé. Podia se chamar de benção, mas pra ela era um pouco mais porque no plano do axé, habitava a energia, a criação, a proteção, a explosão da vida que aquece todos os corações.

Muitos abraços, telefones, contatos. Muitos pequenos momentos, vozes tímidas, corações abertos. Espíritos. Ali, candomblé não é apenas religião, é raiz, força, pulsação, tradição.

Ela sentia seu coração batendo, mas de um jeito calmo e protegido. Não havia necessidade de submissão, nem de explosão. Tudo nela era calma, serenidade e pacificação.

- Assim como o cântico do Orixá...

Baixou a cabeça, fechou os olhos e deixou-se levar pela voz tão bonita da menina que homenageou Oxalá. Dia de sexta na Bahia. Em Salvador, tem que ter branco e pelo menos uma saudação para Oxalá.

Epa Babá...

De abraço em abraço, cantando, foi-se libertando de todas as energias difíceis da semana e relaxou sem querer. Apenas, cada vez mais sentia a necessidade de fechar os olhos, respirar e sentir-se parte daquele todo inexplicável chamado axé.

A Bahia tem esses pequenos tentáculos que fazem com que nosso coração e espírito entrem e queiram ir ficando, acarinhados pela sensação de bem estar, de recebimento, de...

Axé...

Epa Babá...

Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV

 

Conto “Eu? Afeganistão?”

Coisas estranhas acontecem. É verdade! Coisas estranhas acontecem com toda a gente, incluindo com ela. É verdade! Mas Afeganistão? Aí já estranhou, já se atemorizou. E se não conseguisse explicar bem? E se eles não entendessem sua explicação? E se mesmo com boas explicações isso não tivesse cura? Sua vida, de repente deu uma volta bizarra e ela não estava a gostar nada do que estava a acontecer. Parecia que, de repente, o mundo tinha conspirado para lhe criar uma cilada. Parecia mesmo, porque aquilo não tinha nexo, nem lógica nem qualquer sentido. “Ui, ui, ui, preciso ter muito cuidado onde piso e o que digo.” – pensou. “Um deslize e a minha vida vira uma enorme confusão.”

Vou tentar explicar. Eu andava na minha vidinha, com as tarefas habituais. Em determinado momento do dia, de um destes dias habituais, fiquei com uma sensação estranha em relação ao prazo de validade da minha carteira de motorista. Sabia que ia caducar, e queria tratar desse assunto com tempo e calma, mas a vida me engoliu, eu mergulhei nela e o tempo passou. E passou bem depressa porque, nesse dia, quando cheguei em casa, de carro, a primeira coisa que resolvi fazer foi olhar a data desse documento. E lá estava - a data de validade tinha caducado uns dias antes.

Queria fazer com tempo, não fiz, agora preciso arranjar tempo, para fazer.

Parei tudo o que estava a fazer e fui tratar do assunto ao local para esse efeito. As pessoas foram todas muito gentis e ajudaram-me imenso. Consegui tudo muito rápido porque tinha pouca gente, nem foi necessário agendar. Revalidações são bem mais fáceis e breves. No final, a senhora me deu um papel para verificar se as informações estavam corretas – um ato obrigatório, mas que nunca tem nada para corrigir – e eu reparei que estava tudo certo, mas, por baixo da palavra “Naturalidade”, estava uma palavra que eu até nem estava a conseguir ler bem. Li uma, duas, três vezes. “O que estava a fazer aquela palavra ali?” – pensava eu e meu cérebro. Por baixo da palavra naturalidade – e eu sou de Portugal, natural de Viana do Castelo - estava a palavra: Afeganistão.

- Desculpe, mas tem uma palavra errada aqui.

- Qual?

- Aqui, debaixo de Naturalidade, diz Afeganistão.

- Sim, diz. Está no sistema desde o início do seu cadastro.

- Desculpe?

- Isso mesmo.

- Mas eu sou portuguesa.

- Sim, ok, mas quando saiu de Portugal, antes de vir para o Brasil, esteve quanto tempo no Afeganistão?

- Senhora, eu nunca fui ao Afeganistão.

- Minha senhora, essa informação está no seu cadastro, desde o início. Está me dizendo que nunca viveu no Afeganistão? Que não nasceu no Afeganistão?

- Exatamente.

- Vai ter de trazer alguns documentos para mudar essa informação. Tem a certeza que nunca foi lá? E que é portuguesa? Tem aí seu RG de Portugal?

- Tenho. Aqui...

- Humm... A senhora estava com pressa em ter o documento, mas para corrigir a informação, vai demorar mais uns 25 dias.

- Não faz mal.

- Tudo bem. É bom mesmo fazer isso porque a partir de agora essa informação iria aparecer na sua carteira de motorista.

- Sério? Jesus na Cruz...Imagine isso...Ainda me extraditavam para o Afeganistão, em vez de Portugal, se eu fizesse alguma coisa errada. Deus me livre...

Aí chegou um colega da senhora logo fazendo piada.

- Podia ter escolhido um país diferente. Tinha de ser logo Afeganistão?

- Era. Se estivesse escrito Estados Unidos, ou Noruega, ou Canadá, era capaz de nem corrigir...ahahah – comentei tentando ver algo engraçado naquilo.

- Pois é, né? Vamos corrigir isso direitinho antes que a senhora tenha de sair daqui com uma Burka.

Gelei...nem me conseguia imaginar dentro dessa Burka, muito menos sem poder cantar, falar alto, dar aulas, viajar, ter minha opinião, sair de casa quando quero, casar com homem ou mulher, adotar crianças, e todos os impedimentos e regras absurdas, horrendas e injustas impostas às mulheres do Afeganistão.

Mas porque me tinha de sair logo Afeganistão?

- Sabe? A pessoa que fez seu cadastro inicial, deixou por preencher o espaço da naturalidade. Devia ter colocado Portugal, porque você é estrangeira. É assim que fazemos, todos os estrangeiros têm o seu país no lugar da naturalidade e da nacionalidade. Como deixou espaço vazio, o sistema colocou automaticamente o primeiro país da lista – Afeganistão.

Tratou de tudo, alterou, aguardou o tempo normal, mais os 25 dias e finalmente recebeu o documento renovado e contendo a palavra mais saborosa do mundo – Portugal.

Ana Santos, professora, jornalista

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