Conto “ATÉ ONDE?”
Brasileiro é geneticamente bem humorado e, no início, era assim que todos começamos a nos divertir com os memes, na internet. Afinal, era um mar de “periquitos” marchando, gritando e batendo no peito!
- Vai levar o troféu abacaxi! Ai, ai, ai, o periquito vai ser papai... o Chacrinha ali ia se acabar. Jô, Chico Anysio criariam personagens na mesma hora, gente!
Mas conforme os dias iam passando e ninguém parecia entender que espécie de atitudes eram aquelas, ela olhava a expectativa de que fosse acontecer algo que justificasse o descumprimento da ordem civil e se perguntava:
- Há mesmo quem ache mulheres, negros, pobres, nordestinos e população LGBTQ+ os diferentes desprezíveis dessa história? Há mesmo quem olhe as saudações nazistas no sul do Brasil com essa naturalidade? Há mesmo quem veja gritos, pessoas se jogando pelo chão de uma rodovia, batendo histericamente no peito, se pendurando no limpador de para-brisas de caminhão como manifestantes normais?
Quanto mais ela olhava, mais lhe parecia que aquilo era como uma lavagem cerebral fora de controle. Uma coisa era tentar ser feliz nesse mundo. Mas outra, totalmente diferente, era atrelar a sua felicidade à infelicidade de uma maioria. E ela viu barbaridades acontecerem em nome disso. Nos grupos familiares, repetia e repetia:
- Quem disse que atirar nas pessoas é uma coisa natural, gente? Quem disse que sair armada no meio de uma rua de São Paulo é uma rotina na nossa vida? Quem disse que jogar granadas e atirar 50 vezes – e de fuzil! - no carro da polícia é liberdade de expressão?
Como dizer: PAREM! Vocês foram criados assim? Onde estão os pais de vocês? Onde, na equação, entram respeito e cuidado?
Via pessoas chorando porque a polícia reprimia os atos antidemocráticos com energia e se perguntava:
- Eles nunca viram a polícia agir, achavam que a polícia ia se juntar a eles ou ainda não percebem que estão agindo criminosamente?
E assim, olhando boquiaberta o dia a dia, falando com pessoas conhecidas nos grupos de WhatsApp concluiu que eles, por terem tido ações criminosas que foram permitidas, perderam a noção de que tudo aquilo era crime. Ficaram cegos. Eram irmãos cegos, que estavam sendo contidos, pois assim era a lei - mas estavam cegos. Que nasceram vendo e que haviam sido cegados. Como abrir-lhes os olhos de novo? Como abrir-lhes os braços de novo, mas mostrando que aquilo não era, nunca tinha sido a realidade?
- Vai ter muita gente presa, sabe? E quem criou tudo isso, já está arrumando jeitos de se safar dessa, isso sim...
Ah! E é importante lembrar que o nazismo não foi só o povo judeu morrendo as piores mortes; foi também o povo alemão aprendendo a matar sem fazer perguntas e sendo treinado a fazer isso ao matar seus bichos de estimação a uma ordem “dos chefes” ...
- Pareciiiido com isso tudo que está aí, não é mesmo?
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “Pequenas diferenças”
A tia de Ana, todos os anos nas férias lhe pergunta como correu o ano, como correu a escola, como correu a vida. Ela se preocupa com Ana. Ela também se preocupa em comparar a Ana ao seu filho, da mesma idade, como uma medida para a sua competência como mãe. Por causa disso, Ana sabe que não é bom contar coisas muito importantes que fez para não atrapalhar o mundo imaginário da tia. Responde que aprendeu muita coisa, que ficou a conhecer e a amar Sigur Rós, ama tudo de Antony and the Jonhsons, anda louca porque conheceu a música Gerausch de Wim Mertens, que aprendeu mais umas receitas com as irmãs, com quem vive. Da escola, da faculdade não fala nada mais do que “está tudo bem”, mas está tudo muito mais que bem, mas ia assustar a tia. Para não parecer mal, pergunta como está o primo e a tia diz que está bem, que teve altas notas nas matérias da faculdade, que ela já está em busca de conhecimentos para o colocar na melhor empresa no futuro, que lhe dá uma mesada boa para ele gastar no que quiser, mesmo sem razão, sem trabalho, sem esforço, sem preocupações. Fala mesmo que ele anda muito agressivo com ela mas mesmo assim lhe dá tudo o que pode porque ser mãe é isso. Nossa, pensa Ana, que vida mais sem emoção, sem causa. Tudo preparado, tudo rebuscado, tudo sem sal, tudo sem música, sem alegria, sem paixão, sem calor, sem esforço.
Um ano mais passou. Lá vem a tia com as perguntas. Lá vai a Ana com as respostas. Que a faculdade está boa, mas o que a anda a apaixonar muito são as bandas novas e a descoberta das bandas antigas da música portuguesa, como os Clã, os Deolinda, os Quatro e Meia, o Rui Veloso, os GNR, Jorge Palma, Dino D'Santiago, The Royal Band, etc, etc, etc. Lhe conta como também está super preocupada com o clima e sempre que pode ir visitar os pais ajuda no sítio, distribui frutas e ovos que se produzem a mais, ajuda a separar os lixos e a levar para os lugares onde são recolhidos e sempre que pode vai visitar o rio, as cachoeiras, as montanhas e ouvir a natureza. Que se preocupa com a escalada de violência nas ruas, nas famílias. Que mesmo ela já sentiu na rua como existem homens e mesmo mulheres que têm comportamentos sem nexo, sem cuidado com as outras pessoas. E lá pergunta pelo primo e lá vêm as respostas da tia, que ele já está bem empregado, bem casado, bem encaminhado na vida, que já lhe deu um carro, um apartamento, dinheiro na conta e viagens programadas, que lhe paga o açougue, a academia, as contas de tudo, para ele poder viver sem preocupações.
Mais um ano se passa e novamente as perguntas. Ana fala que terminou a faculdade, mas decidiu ir viver para o campo, para um local bem calmo, sem grande luxos, mas com natureza viva, linda e bastante pura. Que colabora com ONG e com associações da terra que se preocupam com os mais necessitados, que aprendeu que os que vivem com dificuldades são pessoas que estão numa fase da vida que precisam de ajuda e de apoio dos que estão melhores. Que sabe agora que a vida é um vai e um vem, que não estamos com tudo nem temos tudo durante uma vida inteira. Quando pergunta pelo primo para não parecer desagradável, a tia mostra uma foto. E ela leva um choque. Seu primo está do lado do presidente, agora ex-presidente. Foi um dos que contribuiu para as dificuldades que ela e tantos como ela viveram. De repente, ao mesmo tempo que tem nojo, também tem pena dele, mas ainda mais pena tem da tia. Resolve olhar a tia e lamentar a situação. Acontece que a tia estava babada, feliz, orgulhosa e vaidosa com a fama do filho, dizendo que se sentia realizada por ter conseguido uma vida boa e um futuro extraordinário para o filho. Na verdade a tia sentia pena dela, Ana, que não deu nada na vida e estava feliz, porque seu filho, esse sim é um grande homem.
Ana Santos, professora, jornalista
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