Conto “O QUE FOI, CERTAMENTE NÃO ERA MAIS”
Ela recebeu o post e não acreditou na baixaria. O remetente então... era aquele executivo que se pensava “educado nas melhores escolas” – mas, de mentira porque o pensamento daquele homem habitava o banheiro do “pé sujo” mais porco da história dos banheiros.
Ela lhe passou um sabão, mas como todo homem sem vergonha, ele fingiu uma desculpa esfarrapada e pronto. Mas ela se sentiu ofendida. Então era esse tipo de homem que vinha falar que o gênero feminino não poderia dividir o mesmo banheiro com uma mulher trans. Mas que mal lhe havia feito alguma vez uma mulher trans? Aquelas cantadas asquerosas, dignas de um bofetão na cara eram possivelmente ditas entredentes por aquele executivo, pensava ela. Mas que espécie de perigo uma mulher traz à outra, mesmo que uma delas seja trans? Bem... ela não sabia. Nenhum homem sabia, à medida que o estupro, espancamento, perseguição e morte não costuma acontecer entre pessoas do mesmo gênero – a menos que o gênero seja masculino.
- Será que só eu percebo claramente que o perigo para o nosso gênero é totalmente masculino? – pensava ainda “bufando” com a imagem da relação entre candidatos à presidência do Brasil e órgãos sexuais expostos naquele post.
Seria aquilo, o futuro? Homens cada vez mais primitivos correndo com paus, pedras, tacapes e nós fugindo, apanhando, sendo apalpadas pelo corpo em qualquer lugar público porque afinal... eles acham que podem...
- Só que não... Que nojo, que vergonha ver aquele cara que ela conheceu numa reunião se mostrar como... aquilo... Ela suportaria vê-lo de novo em outras situações? Profissionalmente? Por que ela não poderia simplesmente humilhá-lo na frente de todos? Porque todos também eram homens. O que lhe levava ao início: afinal, na sua vida, quem exercia a pior influência era uma mulher trans “apertada pra fazer xixi” como ela, tantas vezes ou – OU – sua vida ser invadida por aquela nojeira partidária do “executivo vulgo respeitável”? Era afinal ESSE o assunto dos homens ao final do expediente? AQUILO?
O que afinal separa a mente masculina da feminina e o que faz eles pensarem que isso – ISSO, esse tipo de coisa – tem humor, inteligência ou algo que não seja sórdido e rasteiro?
Sorriu ao subir as escadas de casa para ver se o bolo de banana que tinha posto no forno já estava pronto: ela tinha feito um bolo, mas eles... como usariam as bananas, hein?
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “Qual o caminho?”
Ana, sempre que escolhe, sabe que está a escolher o caminho certo, mas nunca é o que o mundo quer que escolha. Seu coração sempre lhe diz por onde é. O mundo sempre a olha com má cara. Se ela escolhe o pão com queijo com um copo de leite para lanchar, o mundo fica calmo, mas se ela escolhe o pão com ovo, ou pão com omolete/omelete, ou o pão com filete de bacalhau, que está preparado para os trabalhadores do campo, o mundo fica alerta.
Se escolhe jogar futebol, o mundo não gosta, mas se vai aos jogos olímpicos, o mundo adora e esquece o futebol. Se escolhe a lealdade e o primo a traição, o mundo escolhe o primo. Se Ana assume a sua homossexualidade, o mundo fica chateado porque era mais engraçado e útil falar da sua imaturidade, de ela ser tradicional, de ela ser básica, de eles saberem que ela gostava de mulheres sem ela ainda nem saber, nas suas costas. Ana passa os finais de semana com os pais e o mundo desconfia da sua sanidade, já que todos estão na folia, no estrangeiro, nos concertos, quando ela está naquele lugar tão “parado”. Ana fez e faz o que poucos fizeram mas o mundo continua a vê-la como uma menina incapaz, inexperiente. Ana enfrenta o mundo e o mundo fica amuado, pois ela deveria se vergar, deveria se calar, deveria se contentar, deveria se asfixiar, deveria se evaporar.
Ana quer dar, mas o mundo quer lhe tirar. Ana quer trocar, mas o mundo quer lhe sugar. Ana quer ajudar, mas o mundo quer liderar.
Ana observa com atenção um doce chamado mil folhas. Mil folhas como a vida, como o mundo. Parece encantador, bonito, parece delicioso. Todos amam ou pelo menos todos dizem em público que amam. Parece-lhe enjoativo, seco, com muitas camadas e raramente sente o sabor do creme. Tem momentos em que parece que vai asfixiar com tanta secura e açúcar em pó. E, no entanto, quando vem um pedaço cheio de creme, é nesse momento que ela lembra de novo como tudo tem algo doce, em algum lugar, em algum momento. Mesmo que o mundo amue.
Ana Santos, professora, jornalista
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