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2 Contos de pessoas


Conto “VIDA LOUCA, VIDA ETERNA”

Quando a vida de alguém se acaba, acabo olhando o fio da minha. Soa como um balancete estranho porque analiso coisas transitórias que dão às minhas escolhas esse tom definitivo que separa vida e morte.


Também os amores morrem, tanto quanto sucumbem pessoas que querem organizar tudo, mas não entendem que quem organiza cada passo é mesmo a vida. Nós apenas nos responsabilizamos pela escolha da “opção a, b ou c” e as provas vão mudando de acordo com o exercício do livre arbítrio. Eu acredito nisso e tento não repetir muitas vezes de “matéria”.


Por quê adoecemos, onde amadurecemos, se conseguimos fugir de sintonias antigas, ainda de outras vidas e olhar em paz para tudo. Resgatar.


Vem a morte e de repente – o infinito da vida eterna... Não me lembro o que fiz em tempos passados, como meu espírito se comportou, se foi bom ou mau, se a minha tentativa atual de mais paciência é evolutiva ou não. Sou apenas eu, desta vez, nesta vida, tendo a eternidade desse acordo eterno, numa evolução que precisa ser permanente.


Será que as pessoas pensam nisso? Será que percebem seus vernizes, suas hipocrisias, idiossincrasias e tentam mudar permanentemente? Ou isso será apenas “noia” minha?


Acaba que a minha vida neste corpo me aponta que ser diferente é viver entre a solidão e o isolamento. Muitas vezes porque quero, mas em muitas outras porque nada me resta a não ser isso.


Talvez morrer tenha algum componente igual, como a sensação de estar entregue à sua solidão e isso também ter luz.


Poderiam haver mais palavras, creio. Elas são habitantes cativas da minha mente, sempre, mas... sinto falta do ruído que fazem na boca das pessoas, como os passarinhos na manhã.


A experiência da perda acaba caminhando por espaços mais calmos. A minha primeira perda foi devastadora porque eu nunca tinha pensado na morte e toda a minha vida se modificou quando ela entrou na minha casa e na minha vida. E lá se foi meu pai. Madura, entendi que existem lugares mais acolhedores do que a vida, de mais esperança, quando minha mãe se foi.


Quando chegar a minha vez... Espero apenas partir. Me descolar do corpo e apenas voar. Será que me sentirei mais acompanhada ou essa sensação de ser diferente vai me acompanhar?


Perguntas... Não sei como viver sem elas... Eu e Pessoa, habitantes de um mundo com Clarices e Drummonds... e palavras. Acho mesmo os teus silêncios desoladores como os desertos... São mesmo uma droga.

Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV


Conto “Um sonho”

Ana está na entrada do estádio olímpico, junto de todos da comitiva do seu país. Aguardam autorização para entrar. Ouve-se um zumbido ensurdecedor de gente. 120 mil pessoas felizes num espaço, falam, riem, batem palmas, ovacionam.


“Não esqueçam, quando entrarem olhem e acenem bem sorridentes para a bancada direita. Todos os portugueses estarão assistindo. São poucos segundos, fiquem atentos” – diz a assessora de imprensa.


Seu pensamento saltita, do passado para o presente, do presente para o passado. Será mesmo verdade o que está a acontecer? Na primeira vez que foi a Paris sentiu o mesmo. Chegou mesmo a beliscar-se. Como a vida é, hein? Nada previsível. Ou, talvez seja.


Quando era bem menina escreveu no seu diário que o seu sonho era ir aos Jogos Olímpicos. Depois, com vergonha de os irmãos verem o que escreveu, rasgou essa folha. Era apenas um sonho sim, mas sentia vergonha por estar a desejar algo que era impossível e tinha medo que a gozassem, porque era algo tão impossível, tão absurdo, vendo o lugar que ocupava no mundo. Vivia num país que só tinha atletas olímpicos de Atletismo de fundo, morava numa aldeia onde só existia futebol como esporte. E tudo isto só masculino. Um canto do universo. Devorava documentários esportivos na TV. Daley Thompson, o campeão olímpico de Decatlo, que apesar de uma vida bem complicada se tornou uma referência esportiva eterna, ficou marcado no seu coração. Também não perdia uma competição esportiva na televisão. Jogos Olímpicos, não perdia um segundo. Nessa época, passava tudo na televisão pública e essa foi uma das suas “sortes”.


Em jovem, quando ia buscar água na fonte, trazia os garrafões de 5 litros na mão ou pendurados no guiador/guidom da bicicleta, um de cada lado e imaginava que pessoas assistiam ao “fenômeno”. Muitas vezes ia andar de bicicleta a toda a velocidade por florestas isoladas, corria nas aulas da escola, nadava no rio, sempre imaginando que estava nos Jogos Olímpicos, ou que estava no momento de uma final onde tudo se decidia. Quando já era atleta, na cidade mais próxima, dedicava-se tanto e cuidava da sua alimentação com tanta disciplina que chegava a brigar com a mãe se via muita gordura na comida. Treinava em todos os tempos livres. Nas pausas de 10 minutos do estudo, treinava contra a parede de casa, contra os vasos, contra o chão. Voltava suando para os livros.


Os anos foram passando e a paixão esportiva sempre presente. Ana estava sempre focada em melhorar o que sabia, nunca desistia, mesmo quando tudo parecia dar errado. Sabia que sempre existia a possibilidade de dar certo, pois via isso a toda a hora no esporte e isso a estimulava.


4 anos atrás estava assistindo, como sempre, a todos os momentos dos Jogos Olímpicos. E agora, aqui estava. Parecia sorte, mas talvez não fosse. Talvez fosse uma mistura de intenções e ações suas, de intenções e ações de alguns familiares e de algumas pessoas com quem se cruzou na vida, nunca desistir, sempre sonhar, seguir seu instinto e treinar, tentar, repetir permanentemente.


Gostava de poder dizer a todos os meninos e meninas com quem se cruza todos os dias que vale a pena seguir os seus sonhos, por mais exagerados ou doidos que possam parecer. Mas não é seguir de vez em quando ou só quando são jovens. É seguir a vida inteira, todos os anos, todos os meses, todos os dias, todos os segundos. Também se riram dela muitas vezes, gozaram, fizeram chacota. Ficava triste, não entendia, mas o que ela desejava, ia sempre atrás.


“Podem entrar” avisa a responsável. Ana entra, olha tudo, acena para o lado direito, sorri, lembra seus pais a quem tanto deve por este momento e guarda com o olhar na sua memória tudo o que vê, tudo o que sente. Então era isto que as pessoas viam e sentiam, quando ela assistia pela televisão. Vale a pena. Valeu todo o esforço.

Ana Santos, professora, jornalista

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