Conto “O PITI E O DISCURSO”
Primeira pós-graduação, primeiro convite para apresentar um trabalho, no também primeiro Congresso Internacional de Fono. Lá estava eu, pela primeira vez convidada por meu professor de linguística. Uau.
UAU!
Olhava aquela plateia lotada num misto de pânico e orgulho. Hotel Glória, gente – palco dos desfiles de fantasias, no Rio. Pela minha mente passavam os desfiles de Clovis Bornay, ao mesmo tempo em que via as mesas arrumadas, o púlpito, o microfone, o ritual de sair de trás da mesa, andar aqueles passos, alcançar o meu lugar – e falar.
Nunca poderia imaginar que uma ação tão comum como falar pudesse tornar-se tão árdua – seriam os olhares? Se eram fixos em mim, causavam desconforto; se não ligavam pra mim, causavam frustração.
- Bem, a coisa é meio difícil - pensei.
“A pesquisa em fonoaudiologia” – meu tema. Comecei a falar, com as normas sendo repassadas pelo pensamento: Não olhe fixamente para ninguém, há um ponto logo acima das cabeças que se pode usar como referência... - e meus olhos foram sugados para uma cabeça na primeira fila que balanceava de um lado a outro.
Minha imaginação foi a mil:
- Meu Deus, está odiando! Quando eu acabar de falar, ela vai me exterminar! Tão nova e já vou ser aniquilada nas perguntas, gente! E agora? Meu Deus, a mulher não gosta de nada do que eu falo, discorda de cada palavra!
E aquela cabeça meneando de um lado a outro foi-me cegando, corrompendo meu pensamento, até que num determinado ponto congelei, fiquei muda - como um sapo encantado pela cobra, antes de ser devorado por ela. Num dado momento, com os “olhos nos olhos da mulher e aquela cabeça discordante”, uma voz penetra levemente dentro dos meus ouvidos:
- É cacoete, Ana. Olhe com calma. É um tique nervoso, não vê? – uma outra palestrante percebeu o que estava acontecendo e sussurrava em meu ouvido, na frente da plateia inteira.
- É cacoete, Ana. Olhe com calma. É um tique nervoso, não vê?
Eu vi. Vi muita coisa. Primeiro, que falar amadoristicamente é muito diferente de falar profissionalmente – só que ninguém te fala isso. Em público, você é a imagem que constrói e passa de si mesmo: que profissional é, criativo ou não, intelectual ou não, inteligente ou não, fluente ou não, natural ou não. A voz abençoada da minha colega fono, me tirou do torpor da morte e me devolveu à vida da fluência.
Me recobrei, olhei de novo: A mulher da plateia tinha mesmo um tique nervoso visível e sua cabeça não parava de chacoalhar e tremer. O tique, que era ininterrupto, não foi suficiente para ser notado por mim (veja só!) e minha insegurança, ao se aliar à imaginação e ao medo criou aquela “ilusão de ótica”, que quase me levou ao fim da carreira, no princípio dela. Grande lição. Ali aprendi que alguém precisava preparar as pessoas para esses momentos e que ninguém deveria se permitir sofrer tanta pressão – e foi assim que me especializei em comunicação profissional, mergulhei no estudo dos discursos, aliei à isso minha paixão desde sempre – a linguagem humana – e hoje posso dizer que entendo profundamente como construí-los, independentemente da situação: da fala do professor, a um recurso no Superior Tribunal de Justiça, no jornalismo de Tv, de rádio, spots, narração, interpretação do ator e tudo o que se puder imaginar. Eu quis saber. Eu precisava saber. Nunca mais ninguém precisaria passar por aquela tempestade emocional. O cacoete mudou a minha vida, eu passei a perceber a fonoaudiologia como algo que deveria ser proativa e impedir a doença de chegar, sempre que possível.
E do caos fez-se a luz.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “Tiananmen”
Uma vida pacata e simples, repleta de coisa boas. Com muito momento inesperado. É isso que Ana pensa da sua vida. Está ali. Finalmente ali. Não sabe porquê, não sabe como foi possível, mas está ali e percebe que a vida quis isso. Quis muito isso. E ela está feliz.
Até aos 17 anos nunca tinha viajado para fora do país. Apenas aqueles pontuais passeios doces e fofos com os pais até à fronteira para comprar alguns doces para o Natal ou para a Páscoa e em que nem saía do carro. Não sabia o que significava sair do país, se era importante e por que razão. Lembra que sempre que o pai fazia essa viagem com ela, os irmãos e a mãe, ficavam horas no carro aguardando o pai ter autorização na fronteira. E lembra bem que não podiam fazer barulho, nem ficar muito agitados. Tudo poderia ser razão para serem proibidos de passar. Não ficou muito fã de outros países por conta disso.
Passaram muitos anos. Ana está em Pequim em trabalho e no dia de folga a chefe dá a ideia de irem dar uma volta pela cidade. Ana diz logo que sim. Que legal! Vai poder conhecer um pouco de uma das cidades mais imponentes do mundo. Não foi com nenhuma expectativa de passeio porque ia trabalhar, mas poder conhecer alguns lugares, por um dia, vai ser super.
A chefe escolheu um taxi com guia para conhecer a Cidade Proibida. Sensacional! Um dia de muito calor, mas também de chuva, algo normal em agosto na cidade devido aos níveis elevados de poluição. Abre janela para respirar, fecha janela para evitar tomar banho com a chuva.
No caminho para a Cidade Proibida, a guia pergunta:
- Querem passar na Praça Tiananmen? Querem? Para nós é tranquilo porque é bem aqui do lado.
Ana nem quer acreditar. Estar do lado dessa praça tão importante na história do mundo e poder visitar, estar nesse lugar...está radiante! Que baita sorte!!!
- Que maravilha! Legal né? – fala para a sua chefe, com um enorme sorriso nos lábios.
- Sério Ana? Para que é que você quer ver uma praça?
- Mas é a praça Tiananmen...
- Ahahaha...essa sua mania de cultura se resolve a ir a uma praça? Deixa isso para lá Ana... Você tem cada gosto. Tanta coisa para visitar e vamos a uma praça...ahahaha...
Ana ficou em choque. Era agosto de 1999 e o massacre tinha acontecido em 4 de junho de 1989. A guia nem estava entendendo e quando entendeu que não estavam interessadas, ficou calada o resto do passeio. Ana não conseguiu processar pela sua vida fora como esse momento foi possível. A Praça da Paz Celestial. A Praça Tiananmen. Um lugar simbólico, um lugar com uma energia e uma história ímpar ali do lado e ela não ia poder pisar, ver, sentir. A vida com seus jeitos de difícil compreensão.
Ficou no carro em silêncio, olhando as ruas, olhando o lado que a guia indicou como sendo o local da praça e ficou imaginando-se lá. Como se sua alma voasse e ela a enviasse para lá, para o que ela desejava fazer ali – SENTIR.
Ana Santos, professora, jornalista
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