Conto “CAINDO DO SALTO ALTO”
Quando ela escolheu vôlei, aconteceu o que acontecera sempre – foi um instinto, uma coisa aleatória. Aliás, ela amava a palavra aleatória - casual, fortuita, contingente. Aleatoriamente pode-se opinar sobre a vida e todas as coisas. Não se precisa de crueldade, mas de opinião. Até hoje usa demais essa palavra!
Bem, o caso, é que tanto o vôlei, quanto sua primeira escolha na universidade, tanto quanto todas as profissões que foi acumulando ao redor da comunicação, o tai chi chuan, o taoísmo e em seguida o budismo, as coisas foram passando na sua frente “aleatoriamente” e ela pegou o mais que pode.
No caso do vôlei, tinha tudo contra si, principalmente a altura. A começar da altura. Jamais seria a “cortadora da primeira rede” – na verdade, nem cortadora seria. Mas mesmo assim, era boa defensora e de defesa em defesa, um belo dia saiu de um time muito pequeno e evoluiu. Aquilo lhe subiu à cabeça a tal ponto, que chegou no seu pequeno clube “olhando todos de cima” – do salto alto da sua vaidade.
Aquecimento, alongamento e o técnico escolheu trabalhar a defesa. Seu momento. Será que alguém do outro time tinha lhe falado alguma coisa?
Mesmo sendo homem e muito alto, ele subiu numa plataforma, arrumou cuidadosamente muitas bolas ali em cima e chamou o pessoal que partia do meio atrás. E cortou cem bolas, mil bolas, um milhão de bolas todas em cima dela. Ao invés do incentivo, a crítica. E ela tentou, caiu, levantou cem, mil, um milhão de vezes. Estava tão cansada que esqueceu tudo o que ainda aconteceria – seu clube novo, seu futuro, seu uniforme, seu tênis Mikasa.
Quando finalmente o treino acabou e todas as meninas tinham saído, ele a chamou e sentaram na plataforma de onde ele a tinha “metralhado” pouco antes.
- Sabe o que é ser mascarada? Pois é, hoje, você chegou aqui assim e eu arranquei a sua máscara para o seu bem. Deve ter doído em você, mas saiba que doeu muito mais em mim, que vi você crescer. É inadmissível ver um talento entortar e não fazer nada e essa foi a minha maneira de contribuir. Nunca mais se sinta melhor que seu grupo de trabalho porque você depende dele. Quando sentir a tentação de se sentir diferente de igual, diferente de reconhecida pela oportunidade, reaja – mesmo que seja contra você. Pode ir. Boa sorte.
No curso de sua vida ela salvou gatinhos de morrerem amassados por rodas de ônibus, amassou sorvetes de casquinha na testa de tarados e se meteu em toda sorte de confusões para proteger ideias. Nunca mais com máscaras inúteis. Vendo tantos “filhinhos de papai”, incapazes de se defenderem sem o peso das indicações, percebe cada vez melhor que mesmo com menos coisas, tem mais princípios e que com princípios, consegue visualizar melhor o caminho que traçou em sua vida. Um doce castigo, imposto pelo bom senso, afinal.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “Platão, Platão!”
Jorge, era o nome dele. O melhor jogador de voleibol da escola, do clube, da cidade. Eu era perdidamente apaixonada por voleibol e tudo o que estava em volta. 12 anos, menina da aldeia, com a cabeça cheia de sonhos e pouca experiência de cidade e dos meninos citadinos. O Jorge, era uma mistura de Deus e humano para mim. Via-o sempre ao longe, muita gente em volta. Namorada, amigo dos famosos, dos melhores alunos da escola, dos professores mais legais. Para além disso, eu via o corpo dele como perfeito, mesmo ao longe. Mas o que me apaixonou nele acho que foi o seu ataque de voleibol. A altura, a velocidade, a potência eram impressionantes e a forma discreta como parecia ficar depois de o fazer também me cativou.
Nos intervalos da escola atravessava todos os corredores da escola tentando vê-lo. E se o via, meu coração disparava e minhas pernas tremiam. Ficava ao longe vendo, tentando imaginar as conversas. Via-o uma vez por semana, às vezes bem menos e às vezes mais de uma vez num dia. Aos 13, 14 anos já tentava cruzar-me com ele nos intervalos das aulas. Quando isso acontecia quase nem o via com tanta gente à sua volta, a minha visão enublada e as pernas tremendo. Pelos 15 anos a gente já se foi cumprimentando porque ele começou a “ver-me” por ser jogadora. Naquelas conversas de contar os segredos comecei a assumir que ele não me era indiferente. Não com palavras. Até quase sem usar palavras. Se perguntavam: “de quem gostas?” e demorasse a responder, minhas amigas iam chutando nomes e quando diziam “não me digas que é o Jorge...” e eu ria, ou ficava vermelha, estava dada a resposta. Acho que a determinada altura, gente demais sabia. E, ao mesmo tempo, eu fui ficando desiludida com ele. Cada vez o via mais perto, ele já me cumprimentava, já olhava para mim e parecia que algo se ia apagando. Afinal não era tão bonito. Seu sorriso era estranho, Sua voz demasiado grossa. Era meio grosseiro. Seu corpo era musculado mas tinha umas imperfeições. Enfim, meu olhar começou a “baixar à terra”...fui crescendo, amadurecendo, ficando mais segura, mais confiante na escola e no esporte.
Um dia, estou indo para o treino a pé como sempre e de repente percebo que o Jorge vem na minha direção. Não estava mais ninguém na rua. Estranhei que me visse, que se dirigisse a mim, mas as pernas já não tremiam, nem o coração batia. Ele era agora apenas uma pessoa até um pouco sem graça.
- Olá...
- Olá...
- Olha, queria te perguntar uma coisa... – disse ele com ar de vaidade e de parvoíce.
- Pergunta...
Sorriu todo lambido de vaidade, olha para mim como se eu fosse comida que ele tinha comprado, se aproxima demasiado de mim e num segundo, desfaz meu passado poético.
- Ouvi dizer que estás apaixonada por mim. É verdade?
- Não, - respondo chateada. Quem pensa ele que é?
- Não? Mas olha que muita gente me veio dizer. É verdade que gostas de mim ou não? Estás com vergonha de o dizer? - o ego inchado até aos himalaias...
- Não, não é Jorge. Quando era mais nova sim, tens razão, achava que te amava e disse às minhas amigas. Desculpa mas já não gosto.
Num instante, passei a ter pena dele. Mudou completamente. A vaidade, o poder e o ego desapareceram da sua cara e apareceu a desilusão. Parecia um menino que achou que ia ter o melhor brinquedo e chegou à loja e já tinha sido vendido. Penso que ele sabia desse meu sentimento há muito tempo, mas o momento que escolheu para me abordar foi o momento em que eu já era conhecida e admirada na escola e no clube. Só que, como diz uma canção que gosto muito “...já não sei quem fui, sou outra...sei lá...” e o cara que achava que ia caçar um troféu fácil e quem sabe, usar e largar, já que tinha uma namorada de muitos anos, ficou sem chão porque o pássaro fugiu da gaiola. Eu pedi desculpas mas disse que tinha de ir treinar e deixei-o ali parado a olhar o além...
Era um dia de muito calor, fim de época esportiva, já as competições tinham terminado e as aulas estavam a terminar também. Já estava treinando. Uma colega me lançou uma bola demasiado longe e eu fui buscá-la à zona do público. E lá estava o Jorge de novo. Foi ele que me veio entregar a bola e com um ar triste, desapontado, desiludido e quase pedindo para eu rever a situação, me pergunta se era mesmo verdade o que eu disse, se era mesmo verdade que já não gostava dele ou se tinha mentido. Fiquei com pena dele, fiquei com muita pena do desencontro. Naquele momento eu era o “bom partido” e ele parecia ter adquirido o “feitiço” que eu carreguei alguns anos, me admirando e desejando ser ele o eleito.
- Jorge, gosto muito de ti. És uma pessoa incrível e namoras com uma mulher incrível. Não fiques assim. Eu era menina e tinha chegado à cidade.
Meu Deus! Quanto mais eu falava pior ele ficava.
- Podes pelo menos me dizer o que te fez amar-me? O que viste em mim?
- Gostava muito de te ver jogar.
Fugi dali para o treino. Não podia falar mais nada. Não o queria magoar. Nunca mais o vi. Sei que casou com a namorada. Sei que têm dois filhos e que vivem na mesma cidade. E está tudo certo. Eu não ia querer a vida que ele quis, que eles têm. E nunca iria quebrar o amor que a namorada sempre teve por ele, desde meninos. Me sinto muito feliz por tudo ter acontecido como aconteceu.
Ana Santos, professora, jornalista
Comments