Conto "SEXTA DE POUCA PAIXÃO"
Sexta-feira da paixão e Carla acorda com muitos cards falando dela, no celular. Ainda preparava o café da manhã, quando lhe veio o pensamento pela primeira vez:
- O dia santo tinha virado aquela avalanche de cards e só? Mais nada?
Tomaram café, dia normal. Nem parecia feriado religioso. Na verdade, nem parecia feriado. De repente, o chamado:
- Vem aqui no jardim, por favor!
Ela foi.
Um bicho tinha feito cocô em tudo, na grama inteira. Quem teria sido? Macaco? Mico? Cachorro?
- Atchim! Hummm que horror de cheiro!
Gato.
Coloca-se papelão na grade onde supostamente ele passou. Faz-se armadilhas.
E num dia onde seu coração – mesmo não sendo religioso demais – sente a dor de um homem diante da inconsciência e inconsistência do mundo, de sua barbárie e crueldade históricas, dos interesses políticos envolvidos em viver e na coragem que se precisa ter para não ceder à covardia e se esconder, ou a omissão de negociar o melhor acordo para si mesmo, mesmo que sendo cúmplice do assassinato de seu melhor amigo, de seu mestre! – mesmo nesse dia – sua alergia a gatos a obrigava tapar aqueles buracos nas ervas que poderiam estar permitindo a passagem do – Atchim! – gato.
A internet saiu totalmente do ar no seu bairro, a operadora não avisou nada, como de costume (os serviços no Brasil te fazem de palhaço), a Tv a cabo também não funcionava. No quarto, tentando ver filmes gravados, ela ouve os gritos lancinantes do gato chamando seu parceiro, no cio – quem já ouviu, não esquece.
- Sexta-feira da Paixão e a vizinha deixou o gato solto e foi não sei pra onde... pensou. Sexta-feira da Paixão e tudo o que ela viu foram cards prontos, cocô de gato e nenhum sentido comunitário advindo da casa da vizinha. A mesma falta que permite a violência no trânsito, as mortes que a polícia infringe aos negros, às injustiças sociais inomináveis no Brasil e no mundo, a existência do animal Putin, a existência de muitos como ele, inclusive no Brasil, motociatas enquanto as pessoas simplesmente não têm o que comer, milhões gastos em Viagra para os militares, enquanto o capitão do mato diz que não quer gastar nada com absorventes para as mulheres, discussões sem sentido, num país cada vez mais sem sentido, num mundo onde nada parece ter sentido e onde para tudo se manda ligar para um telefone que não te atende bem, não responde ao que você pergunta, não tem uma pessoa humana e viva pra falar com você...
Olhando para si mesma, ela percebe que, em doses diferentes, e para os não cegos, hoje nós tivemos uma sexta-feira da Paixão real. Como um pequeno pedaço de sofrimento – uma gota para alguns, meios litros para outros – mas um pedaço da dor de Jesus. Que deveria nos obrigar a nos vermos – pelo menos um dia por ano – um dia como hoje.
Suspirou. Ouviu fogos e bombas pela rua – não sabia dizer o motivo porque era sexta-feira da paixão e não havia o que comemorar freneticamente – ouviu o gato berrando na casa da vizinha e as terríveis e bárbaras notícias dos jornais: mortes, estupros seguidos de morte de mulheres e bebês, velhinhas arrastadas por carros, agressão e agressividade por todos os lados do mundo.
- Quantos devem morrer até que entendamos que a ideia do filho de Deus nascer e morrer como um de nós era que percebêssemos que todos somos como Jesus? Essa é a dor lancinante: Ele só pode ser Rei quando nós nos tratarmos com nobreza. Que horror. Que horror!
ANA RIBEIRO
Conto "Chicago"
O seu chefe explicou tudo certinho, bonitinho. “Aqui está a passagem de avião. Você vai mais cedo um dia do que nós porque fica mais barato 25 euros. Sei que é pouco mas temos de economizar. Vai chegar mais tarde por isso avise quando chegar ao hotel para sabermos a que horas chegou. No dia seguinte acorde bem cedo porque o trabalho vai começar umas 7h. Quando chegar ao aeroporto apanhe o transporte que leva as pessoas aos hotéis porque é gratuito ok? Boa viagem!”
Ana ouviu aquilo tudo e sentiu uma tontura, uma má disposição. Respirou fundo e nada disse. Não podia dizer nada. Ainda estava a terminar um trabalho com os chefes e estava muito cansada dos trabalhos anteriores, mas era aquela a sua vida. Não queria dizer nem fazer nada que se arrependesse. Terminou o trabalho, voltou para casa. No meio do caminho para casa achou que ia vomitar. Parou o carro, abriu a porta, abriu a boca, mas só saiu uma pinga de saliva. Estava estranha, seu corpo estava reagindo como nunca reagiu. Como se seu corpo estivesse dizendo que era demais.
Não consegue entender como numa passagem de 3 mil euros, se escolhe para ela uma passagem mais barata 25 euros que implica 4 escalas, que implica sair mais cedo um dia e chegar mais tarde meio dia. Uma viagem de dois dias e duas noites. Porto, Lisboa, Madrid, Nova Iorque, S. Louis, Chicago. Em cada lugar uma espera de 4 a 7 horas para apanhar o próximo voo.
Não tem dinheiro, não tem cartão de crédito. A mãe dá-lhe uma nota de 20, uma de 10 e uma de 5 dólares. 35 dólares para comprar uma lembrança para os irmãos.
Lá vai ela. Porto, Lisboa. Lisboa, Madrid. Madrid, Nova Iorque. Em Nova Iorque vê aqueles caras controlando, desconfiando, vigiando, em busca de pessoas que entram de forma ilegal ou que dizem que vão em trabalho mas afinal o que querem é viver nos Estados Unidos. Uma fila de gente. Perguntam o que veio fazer, responde que veio trabalhar e os papeis, a cara, não sabe, resultou. Passou. Fica deambulando pelo aeroporto com pena de não poder visitar a cidade. Tem 7 horas de espera mas não tem dinheiro para apanhar um taxi, metrô, nada. Olha pelo vidro aquilo que pensa ser Nova Iorque, mas que depois uma senhora lhe diz que é Newark. Nem a cidade pode ver. Ali, do lado, é estranho.
Nova Iorque, S. Louis. Na viagem pede um copo de vinho na refeição. Não servem. Pede uma cerveja. Tem de pagar. Não tem dinheiro. Não tem cerveja. Foi a primeira vez que ouviu falar em pagar fosse o que fosse no avião. Ficou chateada. Chega a S. Louis. Tem uma ideia mágica dessa cidade, a música, o jeito das pessoas. Devora todos com seu olhar tentando perceber se a realidade é igual ao que imagina. Vê um instrumento musical de vez em quando mas as pessoas parecem comuns, iguais. Aqui, da janela, nem consegue ver nenhuma cidade. Fica caminhando. 4 horas, olhando, imaginando. Mais uma cidade ali ao lado sem poder ver.
Chicago. Chega finalmente. Uma cidade também pela qual tem muita curiosidade e ideias bonitas. Onde Michelle Obama nasceu, onde boa música foi criada. Chegou perto da meia noite. O aeroporto vazio. Procura o atendimento dos transportes gratuitos para os hotéis. Fechados. O aeroporto está meio fechado. E agora?
Sabe o nome do hotel, sabe a rua. Vai em direção ao metrô. Ok. Agora precisa comprar um bilhete para perto da rua do hotel. O dinheiro da mãe foi a salvação. Não sabe que linha ou estação escolhe. Procura policiais, mas eles fogem dela. Esquisito isso. Encontrou uma policial que aceitou parar mas explicou tudo de forma tão rápida que não sabe se entendeu bem. Entendeu qual era a linha mas não sabe que sentido escolher nem a estação para sair. Compra o bilhete, vai para a plataforma e pede ajuda a uma menina da limpeza. Ela explica qual a estação e Ana agradece. Entra no metrô mas percebe que ele vai no sentido contrário. Caraca. Sai na estação seguinte. Caraca de novo. A estação é pesada, ambiente pesado. Ninguém olha para ninguém. Já passa da meia noite. Lá vai ela com sua mala, mochila, cara de “não sabe nada”, dar a volta para trocar de plataforma e o ambiente é brabo, pesado, assustador. Chega a plataforma e conta os segundos para entrar no metrô. Ufa, entrou. Acertou no sentido. Olhos no vidro, tentando relaxar e esquecer que está só, sem dinheiro em Chicago, a horas bizarras, passando em zonas pobres, comunidades.
Finalmente chega a sua estação. Pronto. Cheguei! Mas quando sai da estação percebe que está numa rua larga, vazia, sem gente, sem carros. Não sabe para que lado é o hotel. Não tem a quem perguntar e aquelas horas não são horas para perguntar nada a ninguém. Ouve seus passos, ouve as rodinhas da mala e percebe que está em perigo. Basta alguém aparecer e ela não tem fuga, nem sabe para onde precisa ir. Vê um Mcdonalds. Não come há bastantes horas e no hotel não vai poder pedir nada. Além disso, é um bom lugar para perguntar para que lado é o hotel. Mas gente, quando entra percebe que aquele lugar só tem sem abrigo, marginais, gente sem lugar onde ficar de noite. Senta, esconde a mala e a mochila debaixo da mesa e vai comprar comida com esperança de poder perguntar aos empregados onde é o hotel, mas precisa fazer isso de forma que aquelas pessoas não percebam. Comprou a comida mas não deu para perguntar. Os empregados estão mais preocupados em controlar aquele povo todo. Ana, Ana, vais ter de comer rápido, sair daí. Vais ter de ir caminhando tentando ter a sorte de descobrir onde está o hotel. O cara tinha dito que era mesmo perto da estação. Quando sai, perto da uma da manhã, vê um taxi e seu braço levanta imediatamente. Sem pensar. Nem sabe se tem dinheiro que chegue. Reza para que o dinheiro chegue senão terá de pedir ajuda aos seus chefes miseráveis, mas não tem outro jeito. E é agora. Não dá para ficar mais tempo à solta.
Entra no taxi, diz o nome do hotel. O cara olha para ela, sorri, faz um retorno, vira à esquerda e para. Ali está o hotel. Gente, estava tão perto. Estava tão longe para quem não sabe. Tão longe à uma da manhã, em Chicago.
Paga 22 dólares. Obrigada Mãe! Guarda os papeis todos, da comida e do taxi para provar o dinheiro que gastou.
Chega, indicam o quarto, sobe, toma um bom banho, prepara tudo para o dia seguinte, despertador, deita. Adormece na hora. De manhã, as surpresas do costume: os chefes ficaram brabos por ela não ter avisado que chegou. Mas eu cheguei perto da 1h30 da manhã! Não faz mal, dizem. Quando mostrou os papeis das despesas, ouviu logo que eles nem comeram nada quando chegaram e que não tinha nada que apanhar um taxi. Tinham informado que devia ter vindo pelo transporte gratuito.
Não levou lembranças, nem dinheiro para a Mãe. Inventou umas desculpas. Disse que os chefes pediram o dinheiro para resolver um problema. Fez o câmbio para 35 dólares e devolveu à Mãe o dinheiro. Sabe que ela ficou triste. O pior é que ficou com a sensação que ela se esqueceu dos irmãos. Eles que sempre estavam com ela em todos os momentos.
Ana Santos
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