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2 Contos da Adolescência


Conto “Comigo não, violão!”

Ela havia entrado na universidade muito jovem, com 17 anos. Adolescente dos pés à cabeça. Queria uma profissão que fosse útil para o mundo inteiro e ensinar as pessoas a falarem bem, parecia atingir todas as classes sociais, dos mendigos aos reis, pensava ela.

Na universidade, surpresa e sofrimento – que ela encarava de cabeça erguida. Toda quarta o professor de anatomia, depois da aula, dava prova oral. Da matéria que tinha acabado de dar(!). Na sua sala, era a mais nova entre 70 pessoas. Virou o “bebê de proveta” e logo fazia parte do Conselho de CDFs – que ajudavam quem não sabia nada.

Escrevia bem – muito bem. Mas nada disso adiantava em anatomia porque, além das provas orais semanais, havia as provas práticas – alfinetes espetavam “acidentes anatômicos” que causavam “acidentes graves nas notas”. Mas seu nome era com A e os alfinetes deveriam estar ainda nos lugares – ela pensava.

No dia da prova, depois de estudar como louca, entrou em sala antes. Se acalmou, respirou. Pediram pra que saísse da sala porque as “peças” deveriam ser posicionadas para a prova. Tudo certo. Porém, na hora H, o professor, mestre ou doutor Ary – e era assim que ele queria ser chamado – inverteu a pauta. Ela ficou entre os últimos alunos a entrarem no anatômico.

Quase 4 horas depois do início da prova, lá estava ela e as cabeças humanas sobre as mesas. Mas... onde diabos tinham posto os alfinetes que deveriam espetar os acidentes? Ela logo chamou o professor, mestre ou doutor Ary, mas foi inútil – “Eu não tenho culpa que seus colegas sejam imprevidentes e este é o preço a pagar”.

Só havia um alfinete espetado. Nota 2. Depois de ter estudado como louca. Explicou a injustiça, mas foi inútil. O que nunca tinha acontecido, aconteceu – nota vermelha. “A menos que”...

- Mestre, eu aposto como tiro 10 nessa matéria... Mas se eu ganhar, não te chamo mais de mestre, nem de doutor. Será chamado pelo seu nome, como todo mundo. Ah! E no intervalo, um bolo de chocolate é um castigo bem pequeno, eu acho...

- Nunca ninguém tirou 10 na minha matéria... pra ficar emocionante e te estimular, se errar qualquer coisa – mesmo a mínima – vai ficar com zero!

Dormia com os livros e os cadáveres. Tinha um cérebro na geladeira, dentro de uma bacia plástica. Deu-lhe até um nome: Joaquim. Sua mãe? Ficou chocada com ela.

- Aryzinho, vamos de bolo? – E acabaram amigos...

É. Ela tirou o 10. E ela era o “poder central do Universo!”.

Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV


Conto “Lindo, mas por dentro...”

Como ele era lindo. Rapaz! Que ser humano lindo! Olhos castanhos, doces, uns dentes impecáveis, um sorriso que você até ficava desorientada. Uma cara desenhada por um artista com toda a certeza. E o corpo? Meu Deus, meu Deus, o que era aquilo! Sem uma gordurinha, todo desenhado. O tanquinho da barriga zerado, pernas de Tarzan, peito de nadador olímpico. As meninas tropeçavam nos próprios pés quando ele passava. Todas juntas falando baixinho, avisando da novidade, rindo de nervoso, às vezes até se arranhavam, se acotovelavam, se chocavam, com a velocidade de querer avisar, comentar. Era a loucura das meninas adolescentes!

E não é que ele além disso vestia bem, tão bem que quando passava nada mais existia porque elas ficavam aproveitando para ver tudo, tudo, tudo: o sapato, a calça, a blusa, o cabelo, o sorriso, as curvas de cada canto do seu corpo. Umas achavam que ele era doce, outras achavam que era selvagem, outras preferiam apreciar o atleta. Era a razão da vida das meninas, a vida e seus entusiasmos carnais. Cada uma sonhava que seria com ela que ele ia ficar um dia, mas não dizia nada às outras para não perder o encanto, para não ser ridicularizada nem dar ar de convencida ou invejosa.

Um dia, finalmente ouviram sua voz, suas palavras e o mundo parou. Estavam na Leitaria do Carmo, almoçando meia de leite com cachorro quente, umas, croissant com queijo e fiambre, outras e ele chega e senta à mesa do lado com duas amigas. Elas quase se entalaram com a comida quando isso aconteceu. Nem falavam, nem comiam, nem respiravam nem riam. E eis que ele fala e eis que o mundo desaba: um chorrilho de frases e palavras estranhas, grosseiras, machistas, nojentas, maldosas, interesseiras. Contando como enganou uma menina para transar com ela e que depois a largou sozinha no meio da rua, sem roupa, para ela aprender a não ser depravada. Que mulheres, principalmente meninas, eram fáceis demais. Que ele nem precisava se esforçar, que elas pareciam moscas na sua vida.

Deus, porque fizeste isto a estas meninas? Seu coração morreu nesse dia, seus sonhos também. Foi a primeira e a única vez que todas, esfomeadas sempre, não terminaram a comida, nem o leite. Não falavam, pálidas, levantaram, pagaram e saíram. Nunca existia silêncio entre elas. Até esse dia. A partir desse dia, sempre que estavam junto de um homem bonito, esse silêncio voltava. Nunca mais voltaram aquele lugar, nunca mais foi a mesma coisa olhar as pessoas, olhar os meninos, os homens.

Um dia, na escola, organizaram uma enorme festa. Multidão de estudantes aguardando cantores, artistas, dançarinos, tudo famoso. Alguém grita:

“- Pessoal, olha que menino lindo é esse cantor...venham, venham correndo...”

Se existissem drones nessa época, veriam uma multidão correndo para onde estava o menino e um grupo de meninas no sentido contrário, correndo também... Nunca ninguém entendeu...

Ana Santos, professora, jornalista


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